Ao dedicar a presente edição ao tema das fronteiras do direito, da ética e da política a direcção do Boletim da Ordem dos Advogados não podia ter feito escolha mais oportuna. Com efeito, este tema permite abordar várias das questões que mais nos preocupam na actualidade e, talvez, avançar no entendimento de algumas ligações entre estas questões. Pela minha parte, abordarei este tema na perspectiva da sociologia do direito, e gostaria de aproveitar o desafio que muito amavelmente me foi dirigido de contribuir para a sua discussão esboçando em termos muito sumários uma proposta de interpretação do nosso tempo que irá jogar com vários dos possíveis sentidos da palavra ‘fronteira’, e que se pode sintetizar em cinco pontos.
1) As fronteiras entre direito, ética e política
O estabelecimento de fronteiras de alguma nitidez entre direito, ética e política é uma característica do que chamamos a sociedade moderna. Mais especificamente, a diferenciação entre estes três domínios corresponde a duas características das colectividades que compõem esta sociedade. Por um lado, são colectividades que se dotaram de mecanismos que lhes permitem mudar por determinação própria. Um componente central destes mecanismos é a distinção entre o direito e a política. O direito positivo actualmente em vigor enuncia regras definindo actualmente como a colectividade funciona; e órgãos de soberania, aliás instituídos pelo direito, podem decidir, em certas condições, de alterações do direito. Por outro lado, são colectividades que se identificam pela maneira como reconhecem individualmente as personalidades que as compõem como pessoas dotadas de autonomia, o que significa pessoas que devem ter a possibilidade de se aplicar a si próprias determinadas regras, que poderemos atribuir ao domínio da ética, não redutíveis as regras que lhes dirigem as colectividades às quais pertencem. Estas duas características articulam-se uma à outra: entre as impulsões que geram mudança social temos, nomeadamente, iniciativas que tomam determinadas pessoas, movidas pelos seus projectos individuais. Estas características são as de colectividades democráticas. Ou seja, poderia sustentar-se que a diferenciação entre direito, ética e política, geradora de pluralismo normativo, é uma condição da democracia.
2) As necessárias ligações entre direito, ética e política
Depois de ter insistido na diferenciação, devemos realçar que, para uma democracia digna deste nome poder funcionar, deverá haver ligações entre direito, ética e política. Por um lado, o direito deve criar as condições de desenvolvimento da ética, abrindo espaços de liberdade e atribuindo responsabilidades a quem pode exercer estas liberdades, e a política deve apostar em iniciativas individuais no momento em que planeia uma acção colectiva. Por outro lado, tanto o êxito de processos judiciais como a efectividade de políticas públicas dependerão, nomeadamente, das disposições éticas das pessoas envolvidas nesses processos e políticas. Pode avançar-se a hipótese que certos problemas que enfrentam na actualidade as democracias – défice de confiança nas instituições, abstenção, êxito de propostas políticas populistas, etc. – prendem-se com insuficiências nos relacionamentos entre direito, ética e política.
3) Uma nova fronteira que se impõe ao direito, à ética e à política: a questão ambiental
As democracias dependem, portanto, de uma mecânica normativa de uma apreciável complexidade, feita da diferenciação e da interligação entre direito, ética e política; uma mecânica que resulta de um processo evolutivo de, no mínimo, três séculos. Sucede que esta mecânica enfrenta actualmente o desafio de ter de mudar em profundidade face às urgências ambientais. Em poucos anos, deveríamos reconhecer a prioridade das questões ambientais nas agendas políticas, inventar novos dispositivos jurídicos – conferindo direitos a entidades não humanas, reconhecendo novos tipos de crimes, etc. – e alterar o relacionamento que cada um tem com o mundo não humano. E deveríamos fazê-lo de tal maneira que se possa manter a diferenciação entre direito, ética e política – nunca talvez tenha sido tão importante garantir as condições institucionais de mudança organizada, e tão importante haver tanto meios de acções colectivas coordenadas, como capacidade de acção individual face às situações concretas vivenciadas no terreno – e que se mantenham ou até densifiquem as pontes entre os domínios do direito, da ética e da política.
4) Uma fronteira que se poderá considerar como resultando do estabelecimento do império humano na modernidade
No momento de abordar as indispensáveis alterações no nosso relacionamento com o meio ambiente não humano, é fundamental entender como este relacionamento adquiriu as suas actuais características predatórias. Vale a pena aqui avançar a hipótese de um factor específico, provavelmente não o único mas que poderá ter desempenhado um papel importante, e que é crucial ter em conta na linha do raciocínio aqui iniciado. Pode sustentar-se que a diferenciação entre direito, ética e política corresponde a uma focalização da atenção da humanidade na própria humanidade. O direito torna-se positivo num processo que focaliza a atenção dos especialistas nas regras enunciadas, ou seja no discurso humano. A política adquire a sua forma moderna em processos que se focalizam nas tensões existentes entre os projectos de diferentes actores humanos.
O direito deve criar as condições de desenvolvimento da ética, abrindo espaços de liberdade e atribuindo responsabilidades a quem pode exercer estas liberdades
A ética moderna centra-se em questões dizendo respeito às relações entre pessoas. O não humano, neste contexto, adquire o estatuto subalterno de objecto, susceptível de conhecimento, apropriação e consumo. Desta maneira, os dispositivos pelos quais comunicamos, nomeadamente sobre a nossa normatividade, participaram na construção de uma fronteira de um novo tipo entre o humano e o não humano, uma fronteira que atribui um privilégio essencial a um dos seus dois lados; o que se poderia chamar a fronteira de um império. Pode assim sustentar-se que direito, ética e política, ferramentas que se apresentam como indispensáveis para enfrentar os desafios ambientais, poderão ter estado na raiz destes desafios.
5) Os seres humanos, a outra fronteira a estabelecer pelo direito, a ética e a política
Identificou-se assim uma contradição que não pode ter solução fácil, nem, obviamente, resposta nas poucas linhas que restam ao presente contributo. O que está em causa é procurar maneiras fazer evoluir o dispositivo normativo que herdámos, tornando-o mais sensível ao meio ambiente não humano. Paradoxalmente, uma maneira possível de gerar dinâmicas neste sentido poderia ser reconhecer que o mesmo dispositivo evoluiu, nas últimas décadas, no sentido de reduzir a sua sensibilidade também ao meio ambiente humano de uma sociedade cada vez mais estruturada em grandes organizações. Talvez a experiência de ser objecto de racionalização organizacional possa fundamentar novas abordagens aos processos pelos quais organizações tratam a natureza como objecto. E talvez a conjugação destas duas experiências, da exploração dos “recursos naturais” e dos “recursos humanos”, possa dar força a resistências a uma evolução que, neste momento, vai reduzindo os espaços do direito e da política, e comprometendo a relevância da ética.
Nota final:
Varias das questões aqui afloradas serão debatidas no congresso mundial de direito e sociedade que terá lugar no ISCTE de 13 a 16 de Julho deste ano 2022, sob o título ‘Rage, Reckoning & Remedy’.