«O diálogo entre juízes e advogados sobre os problemas da Justiça Administrativa e sua resolução, tem de passar a ser a regra»
O Boletim OA entrevistou José Miguel Sardinha, Advogado e coordenador do Grupo de Trabalho (GT) da Ordem dos Advogados para a reforma da Justiça Administrativa, questionando-o sobre a sua visão e as propostas apresentadas pela OA para resolver os problemas encontrados, em particular o da proverbial morosidade.
Como descreveria o estado da Justiça Administrativa e a seu ver o que falhou nas tão faladas e recentes reformas de 2015 e de 2017?
Na óptica de um advogado que trabalhe com os Tribunais Administrativos, o estado actual da Justiça Administrativa não é nada famoso. O grande problema que temos na Justiça Administrativa continua a ser a sua excessiva morosidade. Esta imagem de “marca” prejudica não só os próprios Tribunais Administrativos, mas também os advogados que trabalham com esta Jurisdição, os quais se sentem profundamente frustrados no exercício da sua actividade profissional por não conseguirem defender, em tempo útil, os direitos e os interesses dos cidadãos e das empresas que os procuram para resolver os litígios com o Estado e Administração Pública em geral. No meio disto tudo pode-se dizer que são os cidadãos que acabam por ser fortemente prejudicados, pois esperam anos e anos até que surja uma sentença com força de caso julgado que reconheça os seus direitos ou que reconheça a violação desses mesmos direitos. Se acrescentarmos a este tempo, um outro tempo, igualmente excessivo e que se prende com a execução das sentenças, pois, infelizmente, a Administração raramente cumpre voluntariamente uma sentença em que tenha sido condenada, a impressão que os cidadãos portugueses têm da sua Justiça Administrativa não é a melhor.
As razões para este estado de coisas são já conhecidas.
Não basta termos um bom CPTA para que a Justiça Administrativa funcione a tempo e horas.
Se não houver investimento do Estado na melhoria dos recursos humanos dos Tribunais Administrativos, muito especialmente, em matéria de número de Juízes, muito dificilmente poderemos vir a ter uma Justiça Administrativa de sucesso.

Neste aspecto – melhoria dos recursos humanos o Estado tem falhado estrondosamente.
Mas não se pense que o aumento do número dos Juízes nos Tribunais Administrativos existentes, constituirá, por si só, a “varinha mágica” que irá resolver os problemas do funcionamento dos Tribunais Administrativos, em particular, a sua morosidade.
Aumentar o número de Juízes, claro que ajuda e muito, mas como disse, não irá resolver, no imediato, o grave problema da morosidade.
Precisamos antes de olhar para a arquitectura do sistema e identificar onde é que estão os seus pontos de estrangulamento, designadamente, no seu modo de funcionamento e organização, e, identificados tais pontos, propor soluções para que o sistema possa passar a respirar com mais facilidade.
Enquanto isso não for feito, repito, o aumento do número de Juízes nos Tribunais Administrativos pode ajudar, mas não irá resolver, de vez, o deficiente funcionamento que presentemente aí se regista.
Considera que o Grupo de Trabalho conseguiu reunir todos os contributos e colaborações necessárias a uma análise profunda e clara dos congestionamentos da Justiça Administrativa?
No curto espaço de tempo que o Grupo de trabalho teve para elaborar as suas propostas, cerca de três meses, acho que conseguimos reunir importantes contributos para enriquecer o trabalho que tínhamos em mãos.
Aliás, quero aproveitar a oportunidade para deixar aqui registado o meu enorme apreço pela disponibilidade e entusiamo que os meus Colegas (João Pacheco de Amorim, Luís Fábrica, Gonçalo Capitão e Marco Caldeira) demonstraram, ao longo do mencionado período, para realizar este trabalho por forma a que fosse honrado o compromisso firmado com o nosso Bastonário para a entrega das nossas propostas no dia 15 de Setembro.
Mas voltando à pergunta, para além dos contributos recebidos pelos nossos Colegas até ao princípio do mês de Maio, contributos esses que, devo dizê-lo com toda franqueza, assumiram-se mais como “desabafos” sobre a excessiva morosidade que tem caracterizado o funcionamento dos Tribunais Administrativos, contámos com os importantíssimos contributos que nos foram dados pelos Senhores Presidentes dos TCA Norte e Sul e pelos Senhores Presidentes dos Tribunais Administrativos e Fiscais da Zona Norte, Zona Centro, Zona Lisboa e Ilhas e Zona Sul, os quais, graças à preciosa colaboração da Senhora Presidente do CSTAF, Conselheira Dulce Neto, a quem aqui publicamente muito agradeço a ajuda que nos foi prestada neste ponto, tiveram a oportunidade de se reunir com o Grupo na sede da Ordem dos Advogados no princípio de Julho.

Devo aliás dizer, que a reunião de trabalho que o Grupo teve com estes Senhores Presidentes, pode-se considerar, permita-se-me a expressão, histórica, dado não me lembrar, na História da nossa Ordem, que alguma vez tenha ocorrido na nossa sede uma reunião desta natureza com todos os Presidentes das 1.ª e 2.ª instâncias da Jurisdição Administrativa.
Por isso, daqui para a frente, o diálogo entre Juízes e advogados sobre os problemas da Justiça Administrativa e sua resolução, tem de passar a ser a regra.
Quais as áreas onde detectaram maior necessidade de intervenção?
As áreas por nós eleitas como necessárias de intervenção e intervenção urgente, foram a “Organização e funcionamento dos Tribunais Administrativos e Fiscais”, a “Tramitação processual” e os “Processos parados por tempo excessivo”.
Com as propostas que apresentámos para resolução dos problemas registados nestas áreas, não pretendemos, nem era esse o objetcivo do nosso trabalho, reformar na íntegra o sistema de Justiça Administrativa.
O que se pretendeu sim, foi identificar onde é que existem os problemas que estão a estrangular o funcionamento do sistema e propor, na nossa óptica de advogados, medidas ou “remédios” para ajudar a curar as doenças de que o mesmo padece.
Será necessário reforçar o número de Tribunais e Juízos disponíveis? Em que medida e porquê?
Já atrás o disse que o reforço do número de Juízes nos Tribunais Administrativos é importantíssimo.
Mas, insisto, se tal reforço não for acompanhado de medidas ou de reformas para ultrapassagem dos pontos de bloqueio do sistema, isso, por si só, não chega.
De qualquer forma, com base na experiência que os membros do Grupo têm do “terreno”, sentimos, face às dificuldades de funcionamento dos TAFs de Braga e Leiria, a funcionarem em instalações que deixam muito a desejar, que será de ponderar, por parte do MJ e do CSTAF, a criação de dois novos TAFs, o TAF de Viana do Castelo e o TAF de Santarém.
No que diz respeito ao TAC de Lisboa, que é um Tribunal Administrativo que constitui, na óptica do Grupo, um caso à parte no seio da Jurisdição Administrativa, atento o enorme volume processual aí registado, depois de termos equacionado a possibilidade de ser criado um Juízo de competência especializada só para tratar dos chamados processos urgentes, com exclusão do contencioso pré-contratual (o qual já conta com um Juízo próprio), optou-se por propor a criação do Juízo de competência especializada do “Direito dos Estrangeiros” em virtude de se ter constatado que o número de processos relativos ao reagrupamento familiar, concessão de asilo ou protecção subsidiária e aos requerentes de asilo é, neste momento, de tal forma excessivo no TAC de Lisboa, que se justifica inteiramente, em nome da celeridade e da eficácia, a criação de um tal Juízo.
Todos os advogados sabem que, findos os articulados, entra-se num “limbo” que pode demorar meses e, às vezes, anos, até que alguma decisão seja tomada no processo
Pessoalmente, há muito que sou a favor, por razões pragmáticas, da criação de Juízos de competência especializada para os processos urgentes nos Tribunais Administrativos em que se verifique uma carga excessiva de processos desta natureza.
No entanto, se, por alguma razão, a experiência do Juízo especializado do “Direito dos Estrangeiros” não ajudar a descongestionar o TAC de Lisboa, haverá que pensar na possibilidade de adopção do Juízo especializado dos processos urgentes, coisa que o nosso Grupo não deixou de sugerir nas nossas propostas.
Que outras medidas em termos de organização dos Tribunais foram propostas pelo GT para aligeirar as pendências e outras dificuldades do sistema?
Uma das medidas que propusemos em matéria de organização e funcionamento dos Tribunais Administrativos foi a de criação dos assessores jurídicos, algo que é há muito reivindicado, e bem, pelos próprios Juízes.
Efectivamente, se queremos um aumento de produtividade por parte dos Juízes dos Tribunais Administrativos, temos de lhes criar condições de trabalho para que tal aconteça.
É preciso libertar o Juíz de tudo aquilo que possa ser um obstáculo à realização da sua missão fundamental que é a de decidir.
A criação dos assessores jurídicos, com uma actividade centrada na busca e recolha de elementos importantes para a fundamentação da decisão judicial, como é o caso de jurisprudência e de doutrina, em suma, numa actividade de ajuda na preparação da decisão judicial, permitirá ao Juíz focar-se naquilo que é essencial, libertando-o de outro tipo de preocupações.
Estou em crer que, a ser posta em prática esta medida, a qual já conta genericamente no artigo 56.º do ETAF, mas à qual ninguém ligou até agora, a mesma poderá vir a constituir um importante contributo para melhorar ( e muito) o funcionamento do sistema.
A par disto, também propusemos a criação de um corpo de consultores técnicos na dependência do CSTAF, constituído por especialistas de várias áreas técnicas que são cada vez mais importantes para o Juiz poder decidir de forma esclarecida em litígios que incidam, por exemplo, nas áreas do ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, saúde pública, património arquitectónico, construção civil, contratação pública, etc.
Este corpo, que deverá resultar de um protocolo a celebrar entre o CSTAF e as Universidades ou as Ordens Profissionais, juntamente com os assessores jurídicos, irá permitir, certamente, auxiliar os Juízes na sua tarefa de decisores, com um impacto positivo em matéria de eficiência no funcionamento do sistema de Justiça Administrativa.
Em relação à própria tramitação dos processos pode explicar aquilo que o Grupo de Trabalho propôs?
Não me vou alongar muito neste ponto pois as nossas propostas já foram divulgadas pela Ordem e aí consta o que foi por nós proposto no respeitante à tramitação processual.
Direi apenas que é muito importante agilizar tal tramitação, mas é igualmente importante compatibilizar tal agilização com a introdução de mecanismos no sistema informático que permitam ao Juiz controlar, de forma disciplinada, a tramitação do processo por forma a que as decisões a tomar aí sejam feitas, “a tempo e horas”.
Todos os advogados que trabalham nesta área, sabem, por experiência própria, que, findos os articulados, entra-se num “limbo” que pode demorar meses e, às vezes, anos, até que alguma decisão seja tomada no processo.
Temos que ultrapassar isto, por forma a que o fim da fase dos articulados não constitua um compasso de espera para algo que não sabe quando e como irá acontecer.
Em síntese, direi que propomos a substituição das notificações a cargo da secretaria pelas notificações electrónicas das partes, a adopção de meios telemáticos na audição das partes e a consagração da natureza excepcional da audiência prévia, já que a prática tem revelado que a audiência prévia pode constituir-se como uma barreira à celeridade na tramitação processual.
Haverá que pensar na possibilidade de adopção do Juízo especializado dos processos urgentes
Findo os articulados, o Juiz tem de proferir Despacho Saneador, devendo a lei prever, a existência de situações excepcionais em que o Juiz profira Despacho Saneador Parcial, remetendo as questões remanescentes para a audiência prévia, a qual deverá ter lugar 20 dias depois de tal Despacho ter sido proferido.
A arbitragem foi proposta pelo GT como uma das soluções para ultrapassar as pendências crónicas. Como se poderia agilizar essa passagem de jurisdição?
Efectivamente propusemos a adopção da arbitragem para os casos de processos que se encontrem sem movimento processual relevante por um período de dois anos ou que tenham sido intentados há mais de quatro anos sem que tenha sido proferida decisão final.
Entendemos que no caso de os Tribunais Administrativos não conseguirem dar resposta em tempo útil aos utilizadores do sistema de Justiça Administrativa, o Estado tem a obrigação moral de proporcionar às pessoas alternativas para a resolução dos litígios em que estejam envolvidas com a Administração.
Se o sistema falhou, não podemos dizer às pessoas “que aguentem” ou que “esperem por melhores dias”.
A nossa proposta pela adopção da arbitragem nas situações que indiquei é poder permitir às pessoas o recurso a outras formas de resolução de litígios prevista na lei.
Não se pretendeu nem agilizar nem complicar a arbitragem nestas situações.
Verificados os seus pressupostos, a parte que se considere prejudicada, suscita a questão no seio do sistema, dado que, na nossa proposta, competirá ao CSTAF avaliar a pretensão de passagem para a arbitragem, e, decidindo pela mesma, remeter o processo a um centro de arbitragem institucionalizado, devidamente autorizado e com competência para dirimir litígios jurídico-administrativos.
Insisto, não se pode é deixar de oferecer uma alternativa aos utentes da Justiça Administrativa que não conseguiram encontrar resposta, em tempo útil, à resolução dos seus litígios com a Administração.
A propósito da arbitragem administrativa, em entrevista ao nosso Boletim, em Maio de 2021, a Presidente do STA, Dra. Dulce Manuel Neto, disse-nos, que para além de entender ser problemático o Estado recorrer à arbitragem privada para a resolução dos litígios, pode servir de pretexto para o desinvestimento do Estado nos Tribunais enfraquecendo o poder judicial na área do Direito Administrativo. Concorda?

Com todo o devido respeito pela opinião expressa pela Senhora Conselheira Dulce Neto, penso que a questão não se pode colocar entre desinvestimento nos Tribunais Administrativos versus valorização da arbitragem administrativa.
Os Tribunais Administrativos podem conviver pacificamente com a arbitragem administrativa.
Como vivemos numa sociedade democrática, a qual, por isso mesmo, deve respeitar a autonomia da vontade dos cidadãos e das empresas em todos os domínios da sua vida e actividade, também no domínio da Justiça Administrativa deve ser dada a possibilidade de escolha a quem se veja envolvido num conflito com a Administração e queira ver resolvido os seus problemas de uma forma célere e económica.
Ora, se os Tribunais Administrativos funcionarem bem, e com custos reduzidos (coisa que o actual sistema de Custas Judiciais, infelizmente, não permite), não há razão nenhuma para os cidadãos não recorrerem à Justiça Administrativa.
Por conseguinte, o Estado deve (tem de) continuar a investir em matéria de meios humanos e equipamentos para conferir eficácia ao funcionamento dos nossos Tribunais Administrativos e isto sem prejuízo da existência de centros de arbitragem na resolução dos litígios jurídico-administrativos.
No final, compete ao particular escolher a forma de resolver o seu conflito com a Administração.
Se os Tribunais Administrativos funcionarem bem, não vejo razão para que as pessoas não recorram aos Tribunais Administrativos para resolução dos seus conflitos com a Administração.
No fundo, é uma questão de prestígio do próprio Estado perante a comunidade: assegurar que pode oferecer um serviço de qualidade, tão bom ou melhor do que aquele que é oferecido pela arbitragem.
A prevista criação do Tribunal Central Administrativo Centro pode ajudar na diminuição das pendências?
Julgo que se tratou de uma iniciativa legislativa do PSD mas que acabou por não fazer o seu caminho.
De qualquer forma, se o TCA Centro for criado, claro que isso constituirá um passo positivo para a diminuição das pendências na segunda instância, até porque tais pendências constituíram um motivo de forte preocupação para o Grupo de Trabalho, que, por isso, também apresentou propostas para a sua resolução.
No entanto, esta é uma situação típica que exige, para sua implementação, Juízes disponíveis, neste caso, Juízes Desembargadores, algo que neste momento duvido que exista.
O processo de informatização e digitalização da justiça administrativa será um meio eficaz para diminuir as pendências?
Uma das nossas propostas visou precisamente o sistema informático de suporte à actividade dos Tribunais Administrativos.
Com efeito, tal sistema informático, seja ele o SITAF ou outro qualquer, tem de conter ferramentas que auxiliem o Juiz na gestão dos processos que lhe estão distribuídos por forma a que o Juiz tenha consciência que tem prazos para cumprir e, caso não os cumpra, isso terá consequências negativas para a boa e célere tramitação processual.
Trata-se de um sistema de verdadeiros alertas informáticos que visa ajudar o Juiz na gestão do seu trabalho, algo que os próprios advogados já possuem nos seus escritórios e que se revela sempre de grande utilidade para a prática de actos processuais nos prazos legalmente estabelecidos.
O sistema foi pensado para a existência de quatro alertas informáticos em matéria de cumprimento de prazos por parte do Juiz, sendo que os dois primeiros alertas funcionarão unicamente na esfera do próprio Juiz, com exclusão de qualquer outro interveniente. Os restantes alertas, só funcionarão, obviamente, se o Juiz, na sequência dos dois primeiros, nada fizer. Nesta última situação, os alertas seguintes já serão do conhecimento do Presidente do Tribunal ou do CSTAF, os quais terão que adoptar as medidas que se justificarem para que o processo não se atrase.
Assim, não tenho dúvidas em afirmar que o sistema informático ou as ferramentas que este contenha no seu seio, podem vir a ser, futuramente, um auxiliar da maior importância no combate à morosidade nos Tribunais Administrativos.
Perfil
Nasceu em 15/09/1959, Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa em 1984.
Advogado desde 08/11/1986, com o título de Advogado Especialista em Direito Administrativo, atribuído pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados.