Acesso à Justiça: o imperativo do financiamento
O financiamento do contencioso por terceiros é, hoje, um instrumento indispensável na garantia do acesso à Justiça.
Pode ser um mero instrumento de gestão financeira, servindo empresas que poderiam assumir o risco e pagar as despesas do contencioso. Mas, muitas vezes, é um modo, ou mesmo o único modo, de abrir as portas dos tribunais a quem não tem recursos suficientes para litigar o seu caso com sucesso. Isto pode suceder com empresas, mas alcança a sua expressão máxima na defesa dos direitos dos consumidores e na luta por interesses difusos, como a proteção do meio ambiente.
Tem existido, na Europa, uma extensa “zona de indiferença”, em que, na prática, muitas empresas são livres de violar em massa os direitos dos consumidores, sabendo que nunca serão forçadas a pagar indemnizações. Na melhor das hipóteses, pagarão indemnizações a uma percentagem ínfima dos lesados. Os nossos sistemas judiciais estão, regra geral, desenhados em termos que tornam economicamente irracional reagir contra infrações complexas que causam um dano agregado muito relevante, mas que se divide em pequenos montantes para cada um dos (muitas vezes milhões de) lesados.
Mas estamos a assistir a um momento de viragem. O cartel europeu dos camiões e o “dieselgate” provaram que é possível usar o financiamento de contencioso para alcançar economias de escala, agregando milhares de lesados, em coligação ou por cessão de direitos, desde que o montante dos danos para cada um seja superior a determinado nível que justifique o investimento em book building (em regra, no mínimo 3.000 euros).
Restam os casos com danos inferiores. Um comportamento de uma empresa que lesa milhões de consumidores, cada um em 10 euros, não é uma bagatela. Impedir que esse comportamento persista e indemnizar os lesados merece toda a atenção dos tribunais. Mas como garantir que estes casos cheguem à Justiça, sobretudo se a identificação e prova da infração for complexa e dispendiosa?
Uma solução teórica seria a intervenção de autoridades públicas. Esta via, porém, ainda nunca levou, em qualquer Estado europeu, à reação a infrações complexas. Apenas se mobilizou contra infrações de identificação e prova simples (e.g., cláusulas contratuais gerais).
Restam os esforços privados, sobretudo de associações de consumidores ou de consumidores individuais. Mas nenhuma associação ou consumidor tem centenas de milhares ou milhões de euros para lutar ao longo de muitos anos contra uma grande empresa que violou o direito da concorrência, que poluiu um rio, que utilizou produtos cancerígenos, etc.
Alguns Estados financiam estes esforços com fundos públicos (por ora, não Portugal). É uma opção necessária, mas insuficiente. Até hoje, nunca levou a contenciosos complexos nos Estados que a disponibilizam. Os financiamentos são tipicamente muito limitados e burocráticos. E criam-se óbvios conflitos de interesse quando o infrator foi o próprio Estado ou uma empresa pública.
O financiamento privado é a única via que já provou poder funcionar para infrações complexas (mas, tipicamente, limitado a ações com danos globais >10 milhões de EUR). Esta solução está a ser prosseguida em múltiplos casos no Reino Unido, na Holanda e em Portugal. Porquê nestes três países? Por serem os únicos com sistemas de representação em modelo opt out (todos são representados a não ser que se autoexcluam) em que o Autor pode recuperar as suas despesas.
O cartel europeu dos camiões e o “dieselgate” provaram que é possível usar o financiamento de contencioso para alcançar economias de escala, agregando milhares de lesados
Foi lançada uma campanha de lobbying, liderada pela Câmara de Comércio Americana, para proibir ou inviabilizar o financiamento de ações coletivas de defesa de pequenos lesados. Não se tenta proibir o financiamento do contencioso por terceiros em geral. Há anos que grandes escritórios de advogados promovem entre nós esta figura para os litígios, judiciais ou arbitrais, dos seus clientes. É, por isso, fundamental esclarecer como funciona o financiamento neste contexto.
Numa ação popular, o Autor pode pedir que seja fixada uma indemnização global para todos os lesados, a ser entregue pela Ré a uma entidade escolhida pelo tribunal, que a distribuirá pelos representados. A lei garante, assim, que o infrator não fique com lucros decorrentes de práticas ilícitas só porque é difícil encontrar todos os lesados. Ao fim de três anos, prescreve o direito dos lesados pedirem a sua parte da indemnização. O montante não distribuído da indemnização global será utilizado para pagar as despesas indispensáveis do Autor, e o remanescente entregue ao Ministério da Justiça, para apoiar futuras ações populares.
Um financiador duma ação popular assina um contrato com o Autor, aceitando pagar todas as despesas da ação, até um limite. Em troca, o Autor promete que, obtendo vencimento de causa, pedirá ao Tribunal que inclua o custo do financiamento como despesa indispensável. Se o tribunal concordar, ordenará o ressarcimento destas despesas do Autor a partir da indemnização global não distribuída (indemnizações já prescritas), incluindo o custo do financiamento, na medida que entender necessário e proporcional. A decisão sobre a existência e grau de remuneração do financiador é sempre, única e exclusivamente, do tribunal. Todos os consumidores que peçam tempestivamente a sua parte da indemnização recebem 100% da sua compensação.
Ao financiador está legal e contratualmente vedada a interferência na gestão processual ou decisões sobre o caso pelo Autor (hands off). Apenas tem direito a ser informado e a pronunciar-se de forma não vinculativa. A conduta processual do Autor é controlada pelo tribunal e pelo Ministério Público (MP). O MP tem o poder-dever de se substituir ao Autor, a qualquer momento, se este não atuar de acordo com os interesses dos representados.
O medo de que o financiamento de contencioso fomente “ações frívolas” é um papão, sem fundamento nem exemplo de alguma ocorrência na Europa. Uma ação popular manifestamente sem fundamento seria liminarmente rejeitada pelo tribunal (como tem sucedido com várias ações populares não financiadas). Nenhum financiador investe numa ação que não tenha boas chances de sucesso. A realidade mostra que estas ações apenas são financiadas quando têm um fundamento jurídico seguro e, sobretudo, quando o ilícito subjacente já foi declarado por alguma autoridade. Na Europa, ao contrário do que sucede nos EUA, não há danos a triplicar nem punitivos, e não há cultura de transações. Entre nós, o problema é o oposto: as empresas Rés não transacionam nestes casos, mesmo quando já confessaram o ilícito. As transações em ações populares são ainda fiscalizadas pelo tribunal e pelo MP.
Até agora, todas as ações opt-out financiadas no Reino Unido, Holanda e Portugal têm-se pautado por especiais cuidados autorregulatórios, seguindo as regras da Diretiva das Ações Representativas (2020/1828, ainda não transposta), as Regras Unidroit sobre financiamento de ações coletivas e o código de conduta da associação de financiadores de contencioso. Mas não se deve confiar que seja sempre assim.
O legislador deve intervir para clarificar e impor limites necessários à boa utilização deste mecanismo (que não decorrem já da lei): (i) financiamento apenas hands-off, com cláusulas que o garantam; (ii) proibição de financiamento por concorrentes da Ré ou outros com conflitos de interesses; (iii) transparência da identidade do financiador e termos do financiamento face ao tribunal (exclusão de elementos confidenciais, maxime orçamento e estratégia processual, face à Ré e terceiros); e (iv) prevenção e controlo do branqueamento de capitais. A transposição da Diretiva 2020/1828 é o momento ideal para se esclarecer estas questões.