Crédito e consumidor bancário
Os tempos pandémicos aumentaram a vulnerabilidade financeira dos consumidores, reclamando uma proteção acrescida para responder a esta dificuldade
A ordem jurídica portuguesa disponibiliza hoje dois diplomas nucleares de proteção aos consumidores bancários: o Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, sobre o crédito ao consumo, e o Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho, que regula o crédito à habitação. Os dois documentos resultam da transposição de diretivas europeias – respetivamente a Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de abril e a Diretiva n.º 2014/17/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro de 2014 – e juntos visam promover a concessão e contração de empréstimos de forma sustentável bem como a inclusão financeira dos consumidores.
Encontramos nos dois regimes instrumentos comuns de proteção: fortes deveres de informação pré-contratual e obrigatoriedade do seu fornecimento através da ficha de informação normalizada europeia (FINE), a persistência de deveres de informação ao longo do contrato, o dever de assistência ao consumidor, que impõe à entidade bancária o dever de auxiliar o consumidor a refletir sobre a adequação do crédito à sua situação financeira (ao contrário do dever de informação, que lida com o momento cognitivo da tomada de decisão pelo consumidor, pretendendo-se que lhe seja concedida toda a informação necessária e adequada a uma tomada de decisão conveniente, com o dever de assistência pretende-se intervir no momento volitivo da tomada de decisão pelo consumidor), a obrigatoriedade de avaliar a solvabilidade do consumidor, as exigências formais do contrato, a possibilidade de reembolso antecipado do crédito e a proteção autónoma do fiador, que beneficia, atualmente, de uma posição semelhante à do mutuário.
Nos dois regimes instrumentos comuns de proteção: fortes deveres de informação pré-contratual e obrigatoriedade do seu fornecimento através da ficha de informação normalizada europeia
Cada um destes regimes apresenta ainda meios próprios de proteção do consumidor. Encontramos no crédito ao consumo, por exemplo, o direito de livre revogação do contrato (artigo 17.º do DL n.º 133/2019) e a migração das vicissitudes do contrato de compra e venda ou do contrato de prestação de serviços para o contrato de crédito, quando estes contratos sejam coligados. Já no crédito hipotecário, ao consumidor foi imposto um período mínimo de reflexão de sete dias entre a proposta final do mutuante e a aceitação do contrato (artigo 13.º, n.º 4, do DL n.º 74-A/2017), a obrigatoriedade para a entidade bancaria de renegociação do contrato em certas situações, a proibição de agravamento dos encargos quando a renegociação for motivada pela (justificada) celebração entre o consumidor e um terceiro de um contrato de arrendamento habitacional da totalidade ou de parte do imóvel, ou por uma situação de dissociação familiar, ou o direito à retoma do contrato de crédito no prazo para a oposição à execução ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, e desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas.
Os dois regimes preveem ainda um regime especial para a perda do benefício do prazo e para a resolução do contrato por incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor.
Os dois regimes preveem ainda um regime especial para a perda do benefício do prazo e para a resolução do contrato por incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor. No caso do crédito ao consumo, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, tiver existido a falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito e, o credor tiver, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato. Sendo o crédito à habitação, o artigo 27.º do DL n.º 74-A/2017 alargou a falta de pagamento a três prestações sucessivas e o prazo suplementar para 30 dias.
Os clientes bancários devem gerir as suas obrigações de crédito de forma responsável e, com observância do princípio da boa fé, alertar atempadamente as instituições de crédito para o eventual risco de incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito. Este dever de alerta é particularmente importante, porquanto desencadeia a aplicação do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, que estabelece um conjunto de garantias para o cliente bancário e o dever para a entidade financeira de contribuir ativamente para prevenir o incumprimento ou para ajudar a ultrapassar a situação de incumprimento. No primeiro caso, a entidade bancária deve elaborar um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI), que descreva detalhadamente os procedimentos e as medidas adotados para o acompanhamento da execução dos contratos de crédito e a gestão de situações de risco de incumprimento. Perante uma situação de incumprimento, as instituições de crédito devem promover as diligências necessárias à implementação de um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), culminando na apresentação ao cliente bancário de uma ou mais propostas de regularização adequadas à sua situação financeira, objetivos e necessidades, quando se conclua que aquele dispõe de capacidade financeira para reembolsar o capital ou para pagar os juros vencidos e vincendos do contrato de crédito através, designadamente, da renegociação das condições do contrato ou da sua consolidação com outros contratos de crédito. Enquanto estiver em vigor o PERSI, isto é, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento, intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito, ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito ou transmitir a terceiro a sua posição contratual.
Os tempos pandémicos aumentaram a vulnerabilidade financeira dos consumidores, reclamando uma proteção acrescida para responder a esta dificuldade, já prevista na Nova Agenda dos Consumidores, de novembro de 2020. O impacto da crise, quer na capacidade financeira dos consumidores, quer no aceleramento do processo de digitalização, levou a que a Comissão Europeia tenha apresentado uma proposta de revisão da Diretiva do Crédito ao Consumo, no dia 30 de junho de 2021 (COM (2021) 347 final). Das alterações propostas destacamos, em primeiro lugar, a informação relativa ao crédito, que deve ser clara e adaptada aos aparelhos digitais, de modo a que os consumidores compreendam o que estão a subscrever. Em segundo lugar, e para prevenir o sobre-endividamento, serão adotadas novas regras para a avaliação da solvabilidade do consumidor, impondo, em especial o artigo 18.º, que não seja permitido à entidade bancária conceder crédito quando a avaliação da solvabilidade seja negativa.