1. CONTEXTUALIZAÇÃO
A advocacia, como tantas outras profissões, é indutora de um estilo de vida específico que resulta, em larga medida, das necessidades e exigências que lhe são colocadas no ritmo diário de desempenho, sendo considerada, como veremos, um campo profissional que se integra nos que potenciam o desenvolvimento de fatores de stress. Abordaremos neste artigo alguns aspetos sobre a relação entre esta entidade nosológica e o exercício do mister de que ora curamos.
2. NOTA BREVE SOBRE O STRESS
Razões de economia de texto levam-nos a circunscrever este escrito ao stress e respetivas possibilidades de desenvolvimento nos atores judiciários que se ocupam da advocacia; e, de caminho, dos estilos de vida que lhe podem dar origem.
Ao longo dos finais do século XX, os problemas mentais foram alcançando outra densificação nas sociedades e atingiram diferentes níveis de abrangência. A ansiedade e o stress, incluindo na expressão reforçada do burnout, começaram a ser encarados como doenças do século, o que tem conduzido ao incremento da investigação e da busca de meios de atenuação da severidade desses problemas, por vias terapêuticas, desde as respostas farmacológicas aos diversos modelos psicoterapêuticos. O stress em contexto de trabalho, muito estudado a partir da segunda metade dos anos 1900, viu alargar-se o raio de ação, aparecendo não apenas naquelas que foram mais precocemente identificadas como profissões de maior risco, mas em muitas outras. Se, inicialmente, se considerava que esses desconfortos psíquicos apenas atingiam um pequeno reduto de atividades de grande exposição do trabalhador a fatores estressantes, mormente quando corria riscos na integridade física e na vida, rápida foi a aquisição de informação médica e psicológica que permitiu concluir que o espetro é bem mais amplo. Ora, um setor em que há muito se alude ao stress, sendo regularmente estudado, é o da justiça, independentemente dos graus e qualidades dos diversos profissionais (Silva, 2002).
Contemporaneamente, como referem Pinto & Silva (2005), banalizou-se a expressão stress, em boa medida devido à sua disseminação nas sociedades modernas, que o tornaram um símbolo cultural do nosso tempo (13), uma quase bandeira das civilizações coetâneas, doença do século XX, potencialmente peste deste século.
Instituído na Física, o termo stress chegou à área da saúde em 1929, por iniciativa de Cannon, que forjou o conceito para designar as forças que afetam o equilíbrio do corpo (homeostasia) e causam esforço acrescido; segundo Cannon, os estímulos físicos e psicológicos podem precipitar reações fisiologicamente idênticas, como a libertação de catecolaminas, substâncias produzidas pela medula suprarrenal; mais tarde, em 1936, Selye detetou a síndrome de adaptação geral, uma reação não específica e de alerta perante estímulos nocivos (Van Praag, de Khoet, & Van Os, 2005).
O stress consiste na pressão que o meio exerce sobre o sujeito, bem como na reação por este assumida para o controlar: as respostas são variáveis, dependendo da intensidade e das caraterísticas dos fatores desencadeantes e do estado dos agentes condicionantes (Vara, 2007). Os fatores e o indivíduo estabelecem uma tensionalidade dialética, procurando este dispor de meios que lhe assegurem reagir à pressão, em ordem à conservação do equilíbrio psicofísico. Assim, o stress faz parte do processo adaptativo que o organismo esboça para enfrentar o esforço, abarcando tanto os problemas dos quotidianos, mais ou menos banais, quanto os acontecimentos complexos e graves (Chalvin, 1982); de certo modo, pode servir de “alavanca da vida” para algumas pessoas, funcionando como meio que habiliza o desenvolvimento de competências pessoais, profissionais e sociais. Vara (2007) considera que pode ser «[…] um incentivo de realização profissional e pessoal» (10), o grão de sal que tempera o percurso de cada um. Enquanto forma de adaptação, pode desempenhar um papel positivo, sendo que, quando as situações são controladas, não constitui uma ameaça efetiva, incitando o sujeito para a utilização de estratégias adaptativas (Kompier & Levi, 1995).
As transformações rápidas, quer em termos macrossociais quer ao nível micro, a aceleração dos estilos de vida e as exigências colocadas no trabalho, sobretudo com as agendas neoliberais mais recentemente impostas, podem precipitar o stress que, em alguns casos e junto de determinados ramos laborais, aparece como sinal de sucesso; daí que se associe recorrentemente o stress aos executivos e decisores, mas não a quem está desempregado, a pessoas sem ocupação remunerada (cuidadores informais, pessoas que vivem em regime doméstico, por exemplo) ou estudantes: porém, trata-se de uma doença que é transversal, que não se limita aos bem-sucedidos, como se verifica, entre outros, com os grupos ante referidos.
Quanto aos fatores geradores, podem ser endógenos ou exógenos ao indivíduo, sendo aqueles inerentes à pessoa, como, entre outros, a ansiedade, a culpabilização ou os sentimentos de impotência ou de incapacidade para a gestão eficaz de situações representadas como problemáticas, ao passo que estes emergem da conjugação com as relações e o ambiente em que a pessoa se movimenta (Bugard, 1974). Por vezes, o stress não provém diretamente da atividade exercida, mas da adição daquele com o trânsito e os transportes casa-trabalho-casa, com paragens pelas escolas onde os filhos estiveram depositados durante a jornada, com a mitigação da vida social e relacional, ou seja: com a ausência de tempo de qualidade e com o elevado número de horas passadas no serviço (os horários continuam a ser excessivos, de maneira mais acentuada em algumas profissões que são repetitivas, pouco criativas ou que requerem grande concentração).
Vaz Serra define o stress a partir da adaptação: as pessoas resolvem, sem grandes dificuldades, a maioria das situações com que têm de se confrontar, uma vez que detêm competências para o efeito, desde logo porque realizaram uma aprendizagem adequada, que possibilita a adoção de reações funcionais face aos diversos estímulos; frequentemente, essas respostas resultam em automatismos, sem que causem alterações no indivíduo; contudo, quando os sujeitos têm de dar seguimento a quadros vivenciais novos, poderão observá-los como problema, pois saem do registo aprendido (e apreendido), impondo a adaptação. Poderá a pessoa recorrer à analogia vitae, isto é: lançar mão de respostas anteriormente usadas em contextos semelhantes para preencher a lacuna, o mesmo é dizer que partir do conhecido para a resolução do desconhecido; porém, pode acontecer que, frente ao problema, o sujeito tema a sua própria incapacidade para obter uma solução adequada, duvidando que esteja apetrechado para levar a missão a bom porto: esse interstício pode ser o ponto de aparição do stress. Constata-se, pois, que o stress se constitui como reação à perceção de exigências que o indivíduo reputa superiores às suas capacidades, o que se traduz em tensão, em resultado de uma avaliação preliminar em que o agente acredita não ser capaz ou não saber formular uma resposta idónea e competente face ao desafio (Vaz Serra, 2005). Neste percurso, o sujeito desenvolve processos psicológicos intermediários que procuram evitar a ameaça, tentando manter o equilíbrio que existia antes do fator ter surgido, ou criar novo equilíbrio (Le Moal, 2001).
A abordagem do stress tem sido crescentemente deslocada da fisiologia para as áreas psicológica e social, correspondendo também aos avanços da investigação. Van Praag, de Khoet, & Van Os (2005) entendem tratar-se do resultado de um processo (35), o qual se inscreve no trajeto vivencial do
sujeito, com os acontecimentos e a descodificação que dos mesmos é feita pelo próprio. Cada pessoa possui um processo de vida, com um trajeto vivencial único, com a biografia, as experiências e os percursos e percalços afetivos, psicossociais, económicos, profissionais e culturais, que vão condicionar – ou acomodar – a análise de cada um em presença dos factos com que se confronta. O mesmo acontecimento é objeto de leituras diferenciadas por parte de cada indivíduo, consoante os fatores ora enunciados e o significado que lhes atribui – e também em função das condições de espaço e tempo em que os estímulos ocorrem (a eco temporalidade). Por isso, há que saber do significado concreto e idiossincrático que cada pessoa atribui ao caso e como o descodifica. Este significado depende ainda da bagagem de experiências, «[…] particularmente as que se tornaram mais significativas no seu processo de desenvolvimento» (Vaz Serra, 2005, 32).
Numa perspetiva geral, vários fatores são referenciados como causa: das condições deficitárias de prestação do trabalho, que podem ir da falta de luz natural a aspetos ergonómicos, da pressão das hierarquias à exposição face ao público, do risco de confrontos com colegas, chefias ou público aos horários intermináveis, no que toca a alguns segmentos de atividade, dos trabalhos repetitivos e rotineiros, do assédio moral ao sexual na estrutura onde se trabalha, das ameaças, diretas ou veladas, de despedimento (Lipovetsky, 2007) – múltiplas são as razões aduzidas para esta doença, assentando muito desse saber em estudos empíricos e nas narrativas autorrelatadas; cumulativamente, a flexibilização das regras jurídicas aplicáveis ao mundo laboral e a insegurança que por vezes daí advém, as dificuldades económicas, a falta de reconhecimento e a competitividade entre colegas, a necessidade de atingir metas e resultados, e a assunção de responsabilidades para as quais ou não se está preparado ou se receia não estar (podendo consubstanciar a síndrome de impostor), concentram condições propícias ao aparecimento de stress. Se é certo existirem profissões de maior risco, de acordo com a informação disponibilizada, a verdade é que não se podem menoscabar as possibilidades de este diagnóstico surgir no desempenho de qualquer atividade, independentemente da representação social que da mesma se faz, das habilitações académicas ou dos rendimentos obtidos (Silva, 2002; Martins, 2004).
A pandemia veio contribuir para o acréscimo da ansiedade e do stress, criando novas condições favoráveis ao aparecimento daquelas patologias, quer pelo medo que a doença, até aí desconhecida, causava, e cujos relatos sobre a letalidade real eram oferecidos em direto por todas as estações televisivas, quer pela obrigação de confinamento, potenciando convivências que, com o correr dos dias, se tornaram ansiógenas, quiçá agressivas e violentas, até por falta de hábito de permanência em casa 24/24 horas, por vezes em espaços residenciais exíguos, com crianças sempre por perto, elas também em estado de ansiedade pelas perdas a que o confinamento obrigava, com as inevitáveis quebras de rotinas laborais e afetivas mantidas fora da ambiência doméstica, como estar com colegas e amigos, manter relacionamentos só possíveis porque havia o tempo para si mesmo, ainda que pudesse ser breve, mas que se traduzia em evasão do campo familiar.
3. ADVOCACIA & STRESS
A justiça encerra em si mesmo muitos fatores precipitantes de ansiedade, stress e burnout, resultante da natureza do trabalho e de condições de exercício das funções, como é referido pela literatura (cfr. Silva, 2002).
Paralelamente, outros profissionais, com o mesmo nível de habilitações e formação, integram de igual modo a lista da população de risco, como os professores do ensino básico e do secundário, os médicos e restante pessoal de saúde (sem ser necessário pensar-se na fase de pandemia), além dos pilotos e tripulações, controladores aéreos, ou ainda os cuidadores de pessoas incapacitadas ou idosas, quer os formais quer os informais; acrescente-se que o elemento risco de ser vitimado no desempenho de funções aparece como causa de stress em polícias e membros de forças de segurança e militares, entre diversos setores. Trabalhar com os outros e para os outros parece constituir fator de stress, sobretudo quando se sabe que da ação (ou omissão) do próprio podem resultar danos ou lesões consideráveis para os utentes.
Quanto à advocacia, pense-se em alguns dos fatores que poderão potenciar o registo ansiogénico e stressante da profissão: desde logo, o estilo de vida, impondo frequentes deslocações, deixando-se muitas vezes trabalho sobre a secretária a aguardar o regresso de diligências fora de portas; a imposição de prazos e a exaustão decorrente de viver de acordo com calendários quase sempre apertados e sobre os quais não se tem controlo; as circunstâncias emergentes da clínica geral da advocacia, com a necessidade de passar em minutos de uma para outra área do Direito; a gestão dos escritórios – porque o advogado acaba habitualmente por se ver compelido a ser gestor, ainda que sem competências académicas para o efeito; a pressão de clientes que, em algumas situações, é desgastante; as causas que precipitam emoções – principalmente, mas não em exclusivo, nas fases iniciais da carreira; a falta de tempos de lazer, a sós ou com os outros; o défice de horas de sono – as noitadas ainda imperam em muitos causídicos; a redução – às vezes, drástica – do convívio familiar, o que se agrava quando há crianças; as perdas (inúteis) de tempo, em esperas junto de dispositivos ou nas filas de trânsito; o abuso de tabaco e de cafeína, além de outras substâncias farmacológicas; a falta de exercício físico; a alimentação, que tanto pode ser irregular, em termos horários, quanto desajustada face às necessidades dietéticas de cada um, com consumo excessivo de sal, hidratos ou gorduras, porque não há tempo para mais; as crispações que inevitavelmente surgem no desempenho da atividade; além de muitos outros fatores que cada um conhecerá da sua própria experiência.
Ora, destes condicionadores de vida derivam consequências que podem precipitar a convocação de entidades nosológicas, como a ansiedade, o stress e o burnout, refletindo-se no plano familiar, na esfera das relações e na saúde, de que se podem referir, entre outras, as seguintes: as ruturas conjugais e a perda de fases ricas do crescimento da prole, podendo arrastar sentimentos de impotência e culpabilização; a mitigação do mapa relacional, por deserção; as alterações de ritmo de descanso, começando pelo sono tranquilo e retemperador, não sendo incomum o recurso a fármacos, com possibilidades de dependência; a obesidade e as perturbações gástricas; a hipertensão arterial, geradora, inúmeras vezes, de problemas cardiovasculares; a irritabilidade, sempre péssima conselheira; a intolerância e a diminuição, ou perda, de empatia; a redução do desejo, em vários níveis; a diminuição da capacidade de concentração; enfim, uma vasta galeria de situações que devem fazer ecoar o alarme de que o sujeito está doente e precisa de se cuidar – seriamente.
Além da necessidade de recorrer a ajuda profissional (médica e psicológica), quando se sentem sintomas como os descritos, os indivíduos devem procurar
A justiça encerra em si mesmo muitos fatores precipitantes de ansiedade, stress, burnout, resultante da natureza do trabalho e de condições de exercício das funções
mudar algo na vida, inclusivamente no campo profissional. Adotar estratégias de coping, que permitam lidar com as situações de maneira adequada, maxime com as exigências endógenas e exógenas; como acentua Vaz Serra (2005), há que ter em conta as estratégias que se direcionam para o problema das que incidem sobre as emoções e das que priorizam as interações sociais. E inverter o estilo de vida, procurando encontrar – e aplicar – meios que diminuam os fatores potenciadores de stress. Por exemplo, apostando em parar uns breves minutos durante o período diário de trabalho, sem preencher a paragem com nicotina ou cafeína; dar-se ao luxo de ter fins de semana de descanso, isto é: sem códigos, nem processos, nem articulados, mas mantendo a mente ocupada com objetos que sejam agradáveis para o indivíduo; garantir pausas musicais ou de leitura; visitar um museu ou uma exposição, ir ao cinema ou ao teatro; dar mais atenção à família e aos amigos, que sentem já a falta do advogado embrenhado em dossiês; andar a pé, ou de bicicleta, de preferência em cenários mais limpos e verdes que os centros urbanos; diminuir os consumos de substâncias que causam dependência ou são suscetíveis de prejudicar a saúde (café, tabaco, chocolate, álcool, snacks…); prestar atenção à alimentação, como fazer as refeições a horas menos disfuncionais e dietas mais equilibradas; estabelecer um pacto de sono, com horas mais ou menos certas de deitar; fazer uns dias de férias sabáticas (pelo menos, uma pausa por semestre); acreditar em si e não se culpabilizar por descansar: não há super pessoas; passear o cão ou brincar com o gato; talvez mudar a decoração do gabinete para cores mais suaves e leves, em lugar dos mobiliários negros; rasgar papéis velhos e imprestáveis em vez de acumular resmas, o que dá a noção ao sujeito de se estar a libertar de pesadas cargas; delegar funções, diligências e afins – algo que para tantos é impossível; no fundo, reprogramar a vida, mas sem deixar de consultar um profissional de saúde. (A Psicologia é uma ciência extremamente útil nestes casos e já lá vai o tempo em que se entendia que só os loucos iam ao psicólogo.)
Afinal, parece ser possível. Acreditar na mudança é o ponto de partida; acreditar em si próprio é o ponto de viragem. Antes que uma paragem forçada compareça à porta do escritório. A sua saúde agradecerá. Acreditamos que a família e os amigos também; decerto que rejubilarão!