Eis do que não pode prescindir um poema: autenticidade, genuinidade. E liberdade, sempre.
QUANDO COMEÇOU A ESCREVER POESIA?
Sinceramente não sei dizer-vos. Algo há que nos impele a escrever. Algo que não entendemos, que por vezes tentamos contrariar ou negar; mas é um impulso tão conatural ao que somos que, de certo modo, passa a ter império sobre nós. Começa-se por escrever sem perceber porquê, coisas infantis, muito leves; é algo que já nos vinha habitando a alma, sempre, para sempre. Lembro-me que numa idade muito jovem, 11 ou 12 anos, escrevia já nos cadernos escolares alguns pequenos poemas que, hoje, a maioria deles perdi. Mas muitos anos depois, remexendo em papéis velhos, reencontro alguns; e guardo-os agora com saudade e encanto. São coisas que, claro, nunca serão publicadas dadas a sua inocência e literatura fraca; mas neles reconheço e realço a franqueza e a genuinidade de quem ainda dizia tão livremente o que lhe ia no espírito de criança; pois nessas idades não sabemos esconder a sinceridade nem dizer o contrário do que sentimos.
Essas liberdade e genuinidade são exactamente o que procuro não perder na minha escrita ao longo da vida.
DE QUE É FEITA A POESIA?
A poesia, penso, melhor dizendo, sinto, é feita de sensações, de emoções, de estremecimentos, de afectos, de referentes, de tanta coisa afinal mal definida. No fundo, é tentarmos dizer o indizível; mas dizê-lo por palavras. A palavra é o meio lídimo da expressão poética; mas palavra que forçosamente seja literária, que arraste consigo a carga mágica que a torna distinta numa linguagem distinta, a linguagem poética. E essa carga poética não se atingirá sem autenticidade na expressão, sem genuinidade na emoção. Eis do que não pode prescindir um poema: autenticidade, genuinidade. E liberdade, sempre. Como disse Herberto Hélder, a liberdade é a regra de ouro. Depois, acessoriamente, a poesia pode vestir-se de musicalidade, ritmo, métrica, mensagem. Mas aí estamos a falar já de artifícios, quais aliterações, contrastes, metáforas, hipérboles, pausas, o que melhor lhe parecer para avolumar o verso, dar-lhe densidade ou corpo. Mas estes são apenas instrumentos, técnicas, modalidades de composição. Artifícios, repito, que se podem usar ao gosto de cada um. Porém, nenhum artifício salva a má poesia; e à boa poesia nenhuma falta de artifício a molesta.
Mas a poesia requer ainda leitura. Muita. Não sei quem disse, mas é uma absoluta verdade: para escrever um poema, é necessário ter lido dezenas e dezenas de livros. Hoje, infelizmente, há tanta gente que reclama o direito a escrever, mas sem sequer reivindicar ou exercer o seu direito a ler. Sem leitura, como sem genuinidade, atenção ao mundo, memória, linguagem cuidada, honestidade emocional, o poema ressumará fragilidade, ou, o que é sempre pior, falsidade, fingimento.
COMO CONVIVE ENTRE O DIREITO E A POESIA?
Bastante bem, percebendo as prioridades e os compromissos que cada dessas áreas comportam. Claro que esse convívio requer algum esforço extra e algum cansaço. Por vezes, tantas, há que escrever a lapsos, intentando contudo que se não quebre a unidade e a coerência da escrita de um livro ou de um poema. No meu caso mais, porque os meus poemas são sempre longos. Quantas vezes sou assaltado por essa veemência de colocar no papel um poema que começa a escrever-se a si mesmo na minha mente. Ouço-o interiormente. Não sei como irá continuar, como terminará. Creio que isto se passa com todos os que escrevem. Se quando tal drama íntimo nos provoca, quando nos interpela esse impulso, essa musa como alguns dizem, essa ocasião que nos convoca – se então não lhe posso dar atenção imediata, porque estou envolvido em alguma situação profissional que o não permite, há que ter claras, repito, as prioridades. Esses são os poemas que se perdem.
OS POETAS MUDAM O MUNDO?
Diz-se sempre que os poetas escrevem para mudar o mundo. Mas quando avançamos na idade, começamos a ter a atitude que, penso, foi a de Manuel António Pina. E nessa atitude agora estou — nestes tempos, escrevo para que o mundo não me mude.
QUAIS SÃO AS GRANDES QUESTÕES DO NOSSO TEMPO?
Saudar a liberdade. Saudar a honestidade. Recuperar o poder da palavra. Recuperar a franqueza de carácter. Defender cada um a lealdade consigo próprio. Não recear caminhar num sentido diferente do que nos indicam, se acreditarmos ser esse o caminho certo. Em sede de escrita poética, que ela seja um repositório fiel das nossas próprias emoções e sensações. Que quem escreve o faça em primeiro lugar para si mesmo. Deixe que cada verso seja, no final, um presente que concedemos a nós próprios. Que não haja fingimento. Nem pretensiosismo, nem ares de primas-donas. Que saibamos transmitir as nossas emoções em boa linguagem, com unidade e coerência. E que com isso consigamos fazer nascer outras emoções ao leitor. Não exactamente as mesmas que nos levaram ao poema, porque essas foram as nossas; mas outras, diversas que sejam. Não precisamos de ser todos escritores para compartilhar versos e o que neles vibra como uma íntima luz. Essa é a magia da poesia. Como digo num poema recente agora editado em Mérida:
(…)Poesia abrigo felicidade acampamento de verão / poesia livros que se leram conversas que tivemos casas onde o meu espírito morou / e mora tudo o que o universo me quis mostrar a cada instante / salão onde afinal podem bailar todos / todos / mas onde só alguns porém tangem a misteriosa lira.
O MESTRADO INTEGRADO DE MEDICINA DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS BIOMÉDICAS ABEL SALAZAR, TEM A CADEIRA “INTRODUÇÃO À POESIA”. NO SEU ENTENDER SERIA ÚTIL AOS CURSOS DE DIREITO?
Creio que sim. As áreas de grande predomínio do concreto, mas onde igualmente deva prevalecer a imaginação, a observação e a experimentação, como é o caso do Direito, beneficiariam a meu ver grandemente se convergissem mais amiúde com uma expressão tão emocional mas ao mesmo tempo tão solidamente humana como é a arte poética
PENSA UM DIA DEIXAR A ADVOCACIA PARA SE DEDIDAR À POESIA?
Não creio que tenha que pensar nisso. Pelo menos por agora. Continuo a fazer conviver bem estes dois modos de expressão da personalidade.
PERFIL
Fernando Cabrita (n.1954 em Olhão). Nome literário de Fernando Cruz Cabrita, Advogado e poeta português com mais de 40 títulos publicados entre poesia, crítica literária e ensaio.
A sua obra recolheu já oito Prémios Literários entre 1980 e 2021, incluindo o Prémio Internacional Palabra Ibérica; e foi traduzida para uma dezena de idiomas.
Está publicado em Portugal, França, Espanha, Polónia, Turquia, Bélgica, Porto Rico, Marrocos e Rússia. A sua poesia vem antologiada, referida e comentada em blogs, jornais e revistas literárias não só desses países, mas ainda da Colômbia, México, Itália e Moçambique. Poemas seus estão musicados pela cantautora Viviane e pelo Projecto Camaleão Azul. É conferencista convidado internacionalmente sobre temas literários e históricos em bibliotecas, escolas, universidades e eventos culturais em Portugal, Espanha ou Marrocos.
De 2015 a 2021 organizou e dirigiu no sul de Portugal o Festival Internacional Literário Poesia a Sul, encontro anual de poetas de todo o mundo.
Já neste ano de 2023 a Associação de Escritores Extremenhos, de Espanha, levou a cabo dois dias de apresentação e debate da sua obra na cidade de Mérida, para os alunos dos Institutos de Educação daquela cidade, e publicou o seu mais recente livro, O Sermão do Vento.