por Daniel Vieira Lourenço
Assistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-Civis (Direito da Família e das Sucessões)
Investigador no CIDP e no LPLRC e Membro Associado da ISFL
«Tanto há que tutelar a busca de uma identidade e história pessoal, como a preservação de uma identidade e história pessoal e familiar já consolidada (..). [O] respeito pelos laços familiares já estabelecidos e, em particular, o dever de não descurar, desde logo, o equilíbrio psíquico e emocional do cônjuge e, sobretudo, dos outros filhos do investigado nascidos na constância do seu matrimónio, são uma decorrência de um outro direito fundamental que é o direito ao respeito pela vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) e do bem família tutelado pelo artigo 36.º da CRP. Negar por completo a paz e a estabilidade familiares e a segurança jurídica dos laços familiares estabilizados corresponde a uma visão puramente individualista e descontextualizada, em termos comunitários, do direito a conhecer as suas origens genéticas.» ([1]).
I. Num recente Acórdão, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na parte em que prevê um prazo de dez anos, contado a partir da maioridade do investigante, para a propositura da ação de investigação de maternidade ou de paternidade, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 1 do artigo 36.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição da República Portuguesa (“Constituição”).
Na declaração de voto apresentada, em discordância com o sentido decisório do referido Acórdão, a Senhora Juíza Conselheira Maria Benedita Urbano introduziu um elemento de ponderação adicional: ao considerar a posição do investigado e da respetiva família, sustentou que o prazo legalmente estabelecido se mostraria justificado, porquanto expressão de que o direito do investigado não seria absoluto, colidindo “(…) com direitos fundamentais do investigado e da sua família constituída e com valores associados ao bem família, como a estabilidade e a paz familiares.” ([2]). Concluiu, na sequência, que “[n]ão atender a isto é não possuir uma visão empática do conjunto das relações familiares e, em geral, do conjunto das relações sociais” ([3]).
II. O argumento bem da família ou paz da família – não poucas vezes formulado como princípio jurídico – tem sido utilizado para justificar um vasto conjunto de leituras que, invariavelmente, contribuem para a secundarização do indivíduo em benefício de um pretenso interesse da comunidade familiar: (i) seja na pretérita preponderância do marido como chefe de família; (ii) seja na proclamação da doutrina da fragilidade da garantia, como justificação para negar a possibilidade de tutela indemnizatória em contexto familiar; (iii) seja na compreensão de posições mais exigentes no que tange ao preenchimento dos requisitos de que depende a dissolução do casamento por divórcio; ou, ainda, (iv) como sucede no caso, na justificação da caducidade das ações de investigação da paternidade ou da maternidade.

Daniel Vieira Lourenço
Encarando o quadro constitucional e partindo da parametrização oferecida, importa questionar, por um lado, se resulta da Constituição a necessidade de reconhecer e assegurar a proteção da família, e, por outro, se, da proteção proposta, deve (ou pode) resultar, a um tempo, a autonomização do princípio da paz familiar ou do bem da família e, a outro, a justificação possível para limitar ou restringir direitos fundamentais num modelo que entende a pessoa como indivíduo em relação.
A primeira pergunta merece resposta imediata: é indiscutível que a família é objeto de proteção constitucional. Resulta, em concreto, do artigo 67.º, n.º 1, da Constituição que, como elemento fundamental da sociedade, a família tem direito à proteção da sociedade e do Estado. Em concordância, ao prever o direito a constituir família e ao prescrever um conjunto de princípios retores da regulação das relações familiares, a Constituição, no artigo 36.º, reconhece a necessidade de assegurar a existência e a proteção daquela instituição. Problema distinto – e prévio à mobilização da proteção da família como elemento de ponderação –, passa por determinar o significado, o âmbito e o sentido da proteção constitucionalmente imposta.
O indício interpretativo de maior relevo decorre do próprio artigo 67.º, n.º 1, da Constituição, ao prescrever o direito à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos membros da família. O bem da família, ou o interesse da família, não podem ser entendidos como realidades abstratas, dissociadas – ou dissociáveis – da pessoa; o interesse da família corresponde, antes, ao interesse e à proteção de cada um dos seus membros, abrangendo, assim, o respeito pela autodeterminação individual e a tutela dos direitos fundamentais e dos direitos de personalidade.
Colocada a questão nestes termos, tem razão a Senhora Juíza Conselheira Maria Benedita Urbano quando entende que o bem da família – ou, numa outra formulação, o interesse da família –, deve ser objeto de valoração na apreciação da constitucionalidade da norma do n.º 1, do artigo 1817.º do Código Civil. Contudo, a valoração exigida pelo bem da família não poderia ser mais distante do sentido interpretativo plasmado no voto de vencido. Proteger o bem da família significa cumprir e fazer cumprir a proteção dos direitos de personalidade e dos direitos fundamentais no quadro ou na dimensão relacional, que é, em si e ainda, realização da pessoa. O princípio da verdade biológica, como princípio associado ao estabelecimento da parentalidade (i.e., maternidade e/ou paternidade), decorre de uma exigência material inerente ao direito ao desenvolvimento da personalidade. Por outro lado, não existe, neste contexto – nem poderia existir –, um direito à não perturbação do status familiar no que tange ao estabelecimento da paternidade ou da maternidade.
Isto porque, para todos os efeitos, o estabelecimento da parentalidade, a partir do critério biológico, surge como decorrência central da edificação de um sistema jusfamiliar fundado no valor da responsabilidade: responsabilidade pelo projeto familiar em todas as dimensões da existência, ainda que com particular incidência no campo da vulnerabilidade ou da fragilidade; responsabilidade como consequência ou manifestação da liberdade. O bem da família impõe, neste âmbito, a atendibilidade da posição do investigante, titular de um direito irrenunciável, intransmissível e imprescritível: pela dimensão pessoalíssima associada não pode ser reconhecida ao tempo eficácia extintiva de qualquer posição jurídica.
III. Não significará isto, ainda assim, uma ingerência (excessiva) na esfera da vida privada e familiar? A resposta deve ser negativa.
O reconhecimento do direito à proteção da vida privada e familiar impõe ao Estado, por um lado, o dever de se abster de ingerências arbitrárias ou desproporcionais na vida privada e familiar, e, por outro, a necessidade de adotar medidas que assegurem o respeito efetivo pela posição jurídica de vantagem reconhecida. Nenhuma das manifestações enunciadas foi desconsiderada: não existe, in casu, qualquer direito que se deva sobrepor ou fazer ceder o direito do investigante. Sem prejuízo, ainda que se reconhecesse uma qualquer ingerência, nunca a qualificação como arbitrária ou desproporcional seria defensável. A segurança jurídica, no campo de situações jurídicas de natureza pessoalíssima, não prescreve – porque nunca poderia prescrever – tal conclusão.
A família não existe fora da pessoa nem da sua dignidade. Na configuração democrática e plural consagrada pela Constituição, a família não pode ser dissociada do valor da responsabilidade relacional; valor que sempre fará ceder qualquer expetativa (ajurídica) de não perturbação dos vínculos previamente estabelecidos, que se queira sustentar na pretensa e injustificada paz da família.
[1] Declaração de voto (Juíza Conselheira Maria Benedita Urbano), Acórdão n.º 523/2025, Proc. 1312/2023 (Relatora: Dora Lucas Neto), disponível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250523.html.
[2] Cit., Acórdão n.º 523/2025, Proc. 1312/2023 (Relatora: Dora Lucas Neto), disponível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250523.html.
[3] Cit., Acórdão n.º 523/2025, Proc. 1312/2023 (Relatora: Dora Lucas Neto), disponível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250523.html.


