Saúde Mental na Advocacia: Inquérito à Advocacia Portuguesa 2024 e experiência do
Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis
Por Tânia Gaspar
Doutorada em Psicologia e Gestão, Mestre em Saúde Pública
e Licenciada em Psicologia Clínica.
Professora Associada com Agregação na Universidade Lusófona
Coordenadora do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis
A saúde mental em contexto laboral constitui atualmente uma das dimensões centrais da qualidade de vida e da sustentabilidade das profissões.
A Organização Mundial da Saúde tem vindo a sublinhar que ambientes de trabalho saudáveis não se limitam à ausência de doença física, mas implicam condições organizacionais e relacionais que previnam riscos psicossociais e promovam o bem-estar (OMS, 2010; DGS, 2021).
Neste quadro, importa analisar a situação particular da advocacia portuguesa, tendo em conta os resultados recentes do Inquérito à Advocacia Portuguesa 2024 e cruzando-os com as evidências produzidas pelo Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (LABPATS).
Os resultados do LABPATS (2022–2023), com base numa amostra de mais de 4.400 trabalhadores portugueses, oferecem um retrato preocupante da realidade laboral no país.
Constatou-se que 76% dos inquiridos apresenta pelo menos um sintoma de burnout e quase metade acumula três sintomas centrais: exaustão, irritabilidade e tristeza.
Mais de 35% referiu padrões de sono inadequados, 46% declarou não praticar exercício físico de forma regular e cerca de 25% recorre a psicotrópicos para lidar com a pressão laboral.Para além destes indicadores, verificou-se que mais de metade dos trabalhadores não dispõe de competências adequadas de gestão do stress, como perceção de controlo ou confiança nas próprias capacidades.
As dimensões mais críticas identificadas pelo LABPATS dizem respeito à saúde mental, à cultura organizacional, ao compromisso da liderança, ao ambiente psicossocial e à escassez de recursos de promoção da saúde.
Estes resultados evidenciam que os riscos psicossociais são transversais ao tecido laboral português, mas também que existem dimensões concretas passíveis de intervenção sistemática.

Autora: Tânia Gaspar
Doutorada em Psicologia e Gestão, Mestre em Saúde Pública e Licenciada em Psicologia Clínica, Professora Associada com Agregação na Universidade Lusófona, Coordenadora do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis
Quando transpostos para a realidade da advocacia, os dados do LABPATS adquirem particular relevância.
O Inquérito à Advocacia Portuguesa 2024 confirma que este grupo profissional enfrenta fatores de risco psicossocial significativos, associados tanto ao modo de organização do trabalho como às condições estruturais da profissão.
Os resultados mostram que 25% dos advogados aufere menos de 719 euros mensais, apesar de 85,5% trabalhar a tempo inteiro, frequentemente em regime independente.
Apenas 16,9% dos participantes declarou estar satisfeito com a sua remuneração e 29,9% com as condições de exercício, valores que traduzem uma insatisfação generalizada e uma perceção de desvalorização profissional.
A estas condições acresce a dificuldade na conciliação entre vida profissional e vida pessoal, identificada por mais de metade dos inquiridos, fator reconhecidamente associado ao desgaste emocional e ao aumento do risco de burnout (Maslach & Leiter, 2016).
O inquérito também revelou desigualdades de género persistentes: as advogadas continuam a receber menos do que os seus colegas homens e enfrentam maiores obstáculos na progressão da carreira.
A imagem pública negativa da profissão e a baixa confiança no sistema judicial reforçam o sentimento de frustração e alimentam a perceção de falta de reconhecimento social, fatores que o LABPATS assinala como críticos para a saúde mental dos trabalhadores.
Do ponto de vista da análise dos riscos psicossociais, a advocacia concentra praticamente todas as dimensões de vulnerabilidade identificadas pela literatura.
A sobrecarga de trabalho, com prazos rígidos e elevada imprevisibilidade, gera stress crónico.
A falta de previsibilidade e a instabilidade do volume de trabalho, especialmente em prática independente, potenciam sentimentos de insegurança e ansiedade.
O isolamento profissional, típico de advogados que trabalham sozinhos ou em estruturas muito pequenas, limita as redes de apoio social, reconhecidamente protetoras da saúde mental.
A competitividade extrema e a incerteza quanto à progressão na carreira alimentam a exaustão psicológica.
A tudo isto soma-se à exposição permanente ao conflito, inerente à atividade forense, que pode aumentar a irritabilidade e potenciar sintomas depressivos.
Estas condições não são meramente circunstanciais; elas configuram um ambiente de risco sistemático e crónico.
O LABPATS mostrou que quando a cultura organizacional não valoriza a ética, a cooperação e a liderança saudável, aumenta a probabilidade de burnout, de absentismo e de presentismo, este último particularmente prevalente em profissões de elevada exigência cognitiva, como a advocacia.
No caso concreto dos advogados, o presentismo traduz-se em longas horas de trabalho com baixa produtividade, fruto do desgaste mental acumulado.
Os resultados do Inquérito à Advocacia Portuguesa 2024 e do LABPATS convergem na identificação de riscos psicossociais que comprometem a saúde mental dos trabalhadores portugueses em geral, e dos advogados em particular. A prevenção e mitigação destes riscos exigem uma abordagem ecológica e multinível, que envolva mudanças individuais, organizacionais, institucionais e políticas.
Ao nível individual, é fundamental que o próprio profissional investa em literacia em saúde mental, desenvolver competências de assertividade, resolução de problemas e dotar os profissionais de ferramentas de gestão de stress, promovendo também estilos de vida saudáveis (sono, alimentação, exercício, consumos etc.) que atuem como fatores protetores. No plano interpessoal, além de desenvolver o suporte social familiar e apoio dos amigos, torna-se essencial fomentar redes de mentoring e grupos de apoio entre pares, capazes de combater o isolamento e de reforçar a coesão profissional.
O papel da Ordem dos Advogados para uma Advocacia Mais Saudável
A Ordem dos Advogados (OA) é a entidade reguladora e representativa da profissão, pelo que tem uma posição estratégica para promover condições mais saudáveis de exercício. Entre as medidas que poderia implementar, destacam-se:
– Observatório de Saúde Mental na Advocacia: criação de uma estrutura permanente, articulada com o LABPATS, para monitorizar os riscos psicossociais, identificar tendências e propor medidas preventivas baseadas em evidência científica.
– Programa nacional de apoio psicológico confidencial: disponibilização de consultas de psicologia, presenciais e online, subsidiadas pela Ordem, com confidencialidade garantida e adaptadas às necessidades específicas da advocacia.
– Linha de apoio 24h: serviço telefónico ou digital para situações de crise psicológica, stress agudo ou risco de burnout.
– Formação obrigatória: inclusão de módulos sobre saúde mental, autocuidado, gestão do tempo e liderança saudável no estágio profissional e na formação contínua de advogados.
– Mentoria e redes de apoio intergeracional: programas formais em que advogados seniores acompanham advogados mais jovens, ajudando-os a gerir os desafios iniciais da carreira e a reduzir o isolamento profissional.
– Campanhas de combate ao estigma: sensibilização sobre saúde mental, desmistificando a procura de ajuda psicológica e promovendo a valorização da advocacia enquanto profissão essencial à democracia.
– Advocacia solidária interna: criação de fundos ou protocolos de apoio a advogados em situação de fragilidade económica ou de doença prolongada, diminuindo a vulnerabilidade social.
O papel dos escritórios de advocacia e organizações profissionais
A nível organizacional, os escritórios e sociedades de advogados podem desempenhar um papel decisivo na promoção de ambientes de trabalho saudáveis, adotando práticas que reduzam riscos psicossociais:
– Políticas claras de carga horária: definição de limites máximos de horas extraordinárias, promovendo períodos de descanso e incentivando a desconexão digital fora do horário de trabalho.
– Flexibilidade e conciliação trabalho-família: implementação de regimes híbridos de teletrabalho, horários adaptados a responsabilidades parentais ou familiares e dias específicos para gestão pessoal.
– Avaliação periódica de riscos psicossociais: aplicação regular de inquéritos de clima organizacional e bem-estar, permitindo identificar áreas críticas e desenhar intervenções específicas.
– Programas de bem-estar: criação de espaços de pausa, promoção de pausas ativas, incentivo à prática de exercício físico e oferta de workshops sobre mindfulness, gestão do stress e ergonomia.
– Formação de líderes: programas de desenvolvimento de liderança que privilegiam a comunicação clara, a empatia e o respeito, reduzindo práticas hierárquicas baseadas em pressão e autoritarismo.
– Transparência e equidade salarial: definição de critérios claros de progressão de carreira e remuneração, reduzindo desigualdades de género e a perceção de injustiça organizacional.
– Estratégias de cooperação interna: incentivo ao trabalho em equipa e ao networking, mitigando o isolamento característico de muitos profissionais em prática individual.
O papel do Estado e das políticas públicas
Ao nível macro, cabe ao Estado assegurar que a advocacia, como profissão liberal, mas de interesse público, beneficia de um enquadramento legal e social que protege a saúde mental dos seus membros. Entre as medidas possíveis encontram-se:
– Reforma do regime contributivo para garantir maior justiça contributiva e proteção social adequada em casos de doença, parentalidade, invalidez e reforma. A atual ausência de proteção robusta aumenta a insegurança e o stress financeiro entre os profissionais.
– Integração da advocacia em programas nacionais de promoção da saúde mental: incluir advogados em campanhas de prevenção de burnout e em programas de apoio psicológico subsidiado pelo SNS.
– Legislação sobre riscos psicossociais: reforço do quadro legal para prevenção de assédio moral, violência psicológica e sobrecarga de trabalho, com aplicação explícita a profissões liberais.
– Incentivos fiscais e financeiros: criação de benefícios fiscais para escritórios que implementem boas práticas de saúde laboral (como flexibilidade horária ou programas de bem-estar).
– Valorização social da advocacia: campanhas públicas que reforcem a imagem do advogado como profissional essencial ao funcionamento do Estado de direito, combatendo a perceção de desvalorização identificada no inquérito.
– Igualdade de género: programas específicos para monitorizar e corrigir desigualdades salariais e de progressão na profissão jurídica.
Mais do que um imperativo de bem-estar individual, trata-se de uma exigência para a qualidade da justiça e para a credibilidade do sistema democrático. Cuidar da saúde mental dos advogados é, em última instância, cuidar da saúde da própria justiça e da sociedade.
Para mais informação:
Conselho Geral da Ordem dos Advogados. (2024). Inquérito à Advocacia Portuguesa 2024. Lisboa: Ordem dos Advogados. https://portal.oa.pt/media/146073/inque-rito-a-advocacia-portuguesa_resultados_2025_abril22.pdf
Direção-Geral da Saúde (2021). Guia técnico n.º 3: vigilância da saúde dos trabalhadores expostos a fatores de risco psicossocial no local de trabalho. DGS/Programa Nacional de Saúde Ocupacional. https://bussola.gov.pt/Guias%20Prticos/Guia%20técnico%20vigilância%20da%20saúde%20mental%20dos%20trabalhadores.pdf
Gaspar, T., Telo, E., Arriaga, M., Sousa, B., Jesus, S., Xavier, M. C., Machado, Matos, M. G., Correia, M. F., Pais-Ribeiro, J. L., Areosa, Guedes, F. B., Cerqueira, A. & Canhão, H. (2025). Relatório Ambientes de Trabalho Saudáveis: Estudo das diferenças de género e geração. Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis. https://laboratoriopats.wixsite.com/labpats/publicacoes
Gaspar, T., Telo, E., Rocha-Nogueira, J., & LABPATS (2023). Manual de Boas Práticas: Promoção de Ambientes de Trabalho Saudáveis. Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis. ISBN: 978-989-98346-3- https://laboratoriopats.wixsite.com/labpats/publicacoes