Entre o coração legal e o chip tecnológico
Por João Luz Soares
A discussão do tema da inteligência artificial tem sido feita, muitas vezes, em ambientes de exacerbada mediatização, por referência a uma consideração de vantagens versus riscos, em que os intervenientes, bipolarizados, se lançam ou num processo de evangelização crescente e defesa do uso desses mecanismos; ou, pelo contrário, de diabolização e recusa veemente na adopção dessas ferramentas. Ora a discussão deveria ser feita, num plano mais concreto, numa óptica de eficácia e de identificação das áreas onde a actuação partilhada (simbiose homem e máquina) pode ser mais proveitosa.
Esta discussão é mais aprofundada num especto de utilização, mas só ganha verdadeira relevância quando ancorada na perceção concreta da classe. O recente inquérito à Advocacia Portuguesa permite precisamente aferir esses dados, evidenciando que os desafios da transformação digital e da integração da inteligência artificial são ainda mais prementes no universo da advocacia, onde coexistem forças de tradição e a exigência de adaptação a um futuro inevitavelmente tecnológico.

João Luz Soares
As principais conclusões retiradas do inquérito apontam para uma advocacia em clara transição estrutural – situada, portanto, entre certezas, dúvidas mas, sobretudo, desafios. Em primeiro lugar, destaca-se o aumento da colaboração interdisciplinar, assinalado por 55,3% dos inquiridos, revelando uma ruptura com o tradicional exercício isolado da profissão e a perceção de que o trabalho com profissionais de outras áreas é hoje indispensável. Este é um desafio que está para lá da utilização da IA – que lhe é precedente e, sobretudo, subsequente. Mas a utilização de ferramentas e mecanismos de IA pode densificar sinergias colaborativas que são essenciais na sedimentação do tema.
Seguem-se os desafios ligados à digitalização e à automação de processos (44,7%), bem como a necessidade de desenvolver competências em tecnologias de informação (41,7%). Estes dois indicadores mostram uma consciência crescente de que a prática jurídica será profundamente impactada pela tecnologia e, em particular, pela inteligência artificial, ainda que subsista algum desfasamento (profundo) entre essa perceção e a efetiva adoção de ferramentas digitais no quotidiano forense. A sinalização de importância de mecanismos de IA não é sinónimo, contudo, nem de aceitação nem de permeabilidade de utilização desses mecanismos, e é necessário integrar essas preocupações de forma perene no adn do Advogado.
Outra conclusão relevante é a crescente valorização da especialização em áreas específicas do Direito (44,2%), num contexto de crescente complexidade normativa e de emergência de novas áreas regulatórias. Em linha com esta tendência, 42,4% dos respondentes identificam as mudanças legislativas como um dos principais desafios para a prática profissional, refletindo a necessidade de constante atualização e adaptação. Num espectro de overcompliance, com as entidades obrigadas a serem confrontadas com obrigações complexas ao nível das novas redes legais – prevenção de branqueamento de capitais, Lei do Whistleblowing, Regime Geral da Prevenção da Corrupção, MiCA, AI ACT, CSDR, NIS2, DORA, etc – o Advogado é hoje um especialista em actualização constante, dominando de forma aprofundada o patamar jurídico, mas sobretudo antecipando loopholes e fragilidades.
Democratizar a inteligência artificial é, por isso, principalmente no espectro da advocacia, torná-la próxima, eficaz e funcional — a inovação faz-se com utilidade, simplicidade e propósito.
E a implementação deve ser um processo admitido de transição: entre uma ideia de sofisticação na utilização de IA para uma lógica de eficácia; entre uma abordagem etérea para a aplicabilidade prática (soluções simples, orientadas para tarefas reais, que aumentem a produtividade, a clareza e a autonomia); puxando a IA do futuro para o presente, tornando-a próxima, acessível, desmistificando receios, corrigindo perceções distorcidas e promovendo uma relação mais informada e de familiaridade.
Entre compreensão, diagnóstico, plano de acção e implementação (conceptualização estratégica e operacional e concretização técnica) quais os pontos chave a respeitar?
- Capacitação digital contínua: investir na formação dos profissionais, promovendo o desenvolvimento de competências tecnológicas e digitais.
- Implementação personalizada: adaptar a escolha e integração das soluções de IA às necessidades concretas do realidade operacional (prática individual, sociedades de advogados, ou área de prática jurídica).
- Responsabilidade e supervisão humana: assegurar que a utilização da IA é acompanhada por supervisão constante do polo de inteligência natural, garantindo o cumprimento dos princípios éticos e deontológicos, bem como a qualidade e fiabilidade dos resultados obtidos (questão da explicabilidade).
- Gestão de riscos e proteção de dados: implementar mecanismos robustos de segurança da informação e proteção da privacidade.
- E o mais importante: qualidade do input, assegurando, por isso, a inteligibilidade do output. Para tal, essencial instituir uma cultura de afinamento do prompt e de habituação ao erro: só testando, tentando, errando é que se viabiliza tornar as ferramentas de IA adaptadas as estilo/necessidades próprias.
Esse momento de acelerada digitalização e de utilização crescente de sistemas de inteligência artificial não pode ser feita, no entanto, sem a alma do Advogado, por respeito às várias vestes de respeito pelo princípios deontológicos. E esta preocupação torna-se crucial para garantir que a evolução tecnológica não compromete a identidade nem os valores essenciais da profissão.