Justiça em Portugal: entre a urgência da reforma e o desafio da modernização
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Helena Tavares assumiu, em 2021, o cargo de Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este encontrando-se a exercer, atualmente, o segundo mandato. Com uma experiência de 30 anos na área da Justiça, a Juiz Presidente é licenciada em Direito pela Universidade Católica do Porto (1989-1994) e entrou para a Magistratura em 1995, tendo frequentado o XIV curso do Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Estagiou na Comarca de Aveiro, ao que se seguiu a colocação como Juiz Auxiliar no 3.° Juízo Cível, Comarca de Santa Maria da Feira (1997-1998). A primeira colocação como Juiz Efetiva em Tribunal de ingresso foi na Comarca de Moimenta da Beira (1998-1999) ao que se seguiu o 3.° Juízo da Comarca da Póvoa de Varzim. Em Fevereiro de 2001, foi colocada no 3.° Juízo Cível do Porto, onde esteve até agosto de 2011, tendo iniciado, no mês seguinte, funções no 1.° Juízo do Tribunal de Trabalho de Vila Nova de Gaia que, com a nova estrutura judiciária, passou a ser Instância Central de Vila Nova de Gaia – 5.° secção do Trabalho-Juiz 2, onde permaneceu até dezembro de 2020. Em setembro de 2023, foi promovida ao Tribunal da Relação, estando atualmente colocada na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto. |
Boletim OA – Muito se tem discutido, nos últimos anos, sobre a necessidade de uma reforma da Justiça em Portugal. Na sua perspetiva, quais são as prioridades mais prementes, quer do ponto de vista legislativo, quer organizacional, para assegurar uma Justiça mais célere, eficiente e próxima do cidadão?
É urgente adaptar a Justiça aos novos tempos e torná-la mais rápida porque disso também dependerá a sua eficácia. Impõe-se, desde logo, menos burocracia, um processo mais simplificado, menos formal, embora sempre com o respeito pelas garantias das partes, nomeadamente, o exercício do contraditório.
Embora a assessoria aos magistrados judiciais seja já uma realidade nos Tribunais de primeira instância, é indispensável o alargamento dos quadros e do âmbito das respetivas funções de modo a permitir que aqueles apenas se dediquem ao cerne da sua função: a apreciação da prova, a decisão sobre a matéria de facto, a subsunção facto-jurídica e a decisão de questões de direito, evitando o enredo em prolação de despachos de expediente diário que, a mais das vezes, poderia ser feito pela própria unidade de processos. O juiz deverá apenas ser chamado a decidir o mérito da causa/dirimir o conflito, justificando-se a concessão de mais autonomia na tramitação do processo aos oficiais de justiça ou a assessores.
São ainda absolutamente essenciais alterações legislativas no que respeita ao tipo de litígios que deverão estar nos Tribunais, mais precisamente, fora do seu âmbito de apreciação. É exemplo disso, os processos de execução por coima, cuja competência deveria estar atribuída à autoridade administrativa e que, face ao seu elevadíssimo número, causa entropias no funcionamento das secretarias, que cada vez mais se veem a braços com a escassez de recursos humanos. Além disso, a admissibilidade da litigiosidade em massa deveria encontrar um limite a partir do momento em que se consolida uma determinada corrente jurisprudencial, ainda em primeira instância, relativamente a uma situação fático-jurídica específica.
Do ponto de vista do processo penal, seria importante a eliminação da fase de instrução em alguns tipos de crimes, evitando, mesmo quando ela tenha lugar, que constitua um pré-julgamento, devendo limitar-se à sua efetiva finalidade: confirmação da decisão de acusação ou arquivamento com base na prova adquirida no inquérito, desde que tenha havido oportunidade de defesa por parte do arguido.

Há ainda necessidade de evitar ao máximo a criação de megaprocessos, verdadeiros polvos descontrolados, com investigações a durarem anos e que, muitas vezes, poderiam ser cindidos em processos mais pequenos e em julgamentos mais rápidos.
Impõem-se também decisões mais claras, mais concisas e mais acessíveis ao conjunto dos cidadãos, ainda que sem negligenciar o rigor jurídico ou a adoção de determinados conceitos que terão, necessariamente, que ser utilizados. Porém, esse esforço também terá que ser exigido aos advogados, com a apresentação de articulados que se limitem a expor o litígio trazido a Tribunal, com um elenco de factos ordenados de um modo claro, lógico, sequencial e autónomo da explanação do direito, devendo este limitar-se ao enquadramento jurídico-fático e à invocação de questões pertinentes, controversas e estritamente necessárias à decisão da causa.
Seria ainda importante que ao alcance dos juízes estivesse uma efetiva possibilidade de sancionar os atos manifestamente infundados ou dilatórios que visam apenas protelar o andamento do processo e o desfecho da causa. Para tal seria crucial repensar o limite máximo das unidades de conta para o efeito. Os valores atuais não causam qualquer abalo quando a parte/interveniente processual é uma grande sociedade ou um particular abastado. É importante que as condenações nessas situações ocorram de modo a gerar um verdadeiro prejuízo no visado, seja pessoa singular ou coletiva, obrigando-o a repensar a sua estratégia processual.
Do ponto de vista organizacional, é crucial dotar os Tribunais (Magistrados e Oficiais de Justiça) de equipamento informático mais atual e com mais capacidade, proceder a uma modernização da rede informática judiciária, permitindo uma maior rapidez na navegação e uma acessibilidade móvel, criando ou reformulando plataformas informáticas de modo a permitir um acesso mais célere e intuitivo ao processo por parte do Tribunal e dos respetivos intervenientes, sejam eles partes, advogados, solicitadores ou agentes de execução.
Por último, é ainda urgente e essencial a revisão do mapa judiciário, sucessivamente adiado por diversos governos, com a atualização e reforço do quadro legal de magistrados e a definição de lugares adequados a um valor processual de referência que se impõe que seja previamente determinado, permitindo uma equiparação dos juízos em termos de volume de serviço e a correção das disparidades de pendências entre aqueles.

Boletim OA – As condições de funcionamento dos Tribunais, tanto no plano infraestrutural como ao nível dos meios humanos e técnicos, têm sido alvo de críticas recorrentes por parte dos diversos operadores judiciários. Qual é a sua avaliação quanto à situação atual e que melhorias considera urgentes para garantir o funcionamento digno da Justiça? Na sua perspetiva, que medidas podem humanizar mais o funcionamento dos Tribunais?
A maior parte dos Palácios da Justiça estão longe da dignidade necessária ao exercício da função soberana de administração da justiça, atribuída ao poder judicial. Amiúde, é reportada por todos os Conselhos de Gestão do país a falta de condições de trabalho decorrentes, não só da escassez, cada vez maior, dos meios humanos, como do estado deplorável de grande parte das instalações. Desadequação de alguns edifícios, falta de espaço, inexistência de sistemas de aquecimento, ventilação e ar-condicionado, fissuras, infiltrações, sobrecarga do sistema elétrico, ausência de sistemas de segurança, é apenas uma pequena enumeração dos problemas resultantes, a maior parte das vezes, da carência de manutenção e adiamento por anos da realização de projetos de obras que, quando se iniciam, já estão totalmente desajustados às necessidades atuais dos serviços que ali estão instalados.
Muitos destes problemas seriam ultrapassados ou, pelo menos suavizados, se a gestão deste património estivesse a cargo do Conselho Superior da Magistratura coadjuvado pelos Órgãos de Gestão das Comarcas. Não nos parece adequado que tal matéria dependa da avaliação e decisão de uma entidade externa, de natureza burocrática e sem a necessária proximidade para identificar e implementar as soluções mais eficazes para a melhoria das condições de trabalho de quem exerce funções no Tribunal e de quem o utiliza. Reclama-se a autonomia financeira e orçamental para os Tribunais de 1º instância como uma medida essencial para fazer face à situação atual, uma vez que lhes possibilitaria uma gestão mais adequada dos recursos, garantindo a conservação e valorização dos espaços e evitando a sua deterioração.
É lamentável que qualquer necessidade ou intervenção sentida por um Tribunal, ainda que urgente, implique sempre um procedimento dependente da aprovação da Direção Geral da Administração da Justiça ou do IGFEJ – Instituto de Gestão Financeira e Equipamento da Justiça, estando o Conselho de Gestão de cada Comarca limitado à administração de um fundo de maneio de 100€!
Do ponto de vista dos recursos humanos é urgente aumentar o quadro de funcionários judiciais nos Tribunais e criar incentivos à sua manutenção na carreira.
No que respeita à Magistratura, é essencial incentivar jovens estudantes de direito a abraçar esta carreira. Neste campo, numa medida inovadora adotada pelo Conselho Superior da Magistratura, foram assinados protocolos de estágios com diversas faculdades de direito, permitindo-se desse modo que alunos, no âmbito da licenciatura e mestrado, façam estágios curriculares nos Tribunais, acompanhando o trabalho diário dos magistrados formadores, analisando processos e assistindo a julgamentos, dando-lhes uma perspetiva real e muito mais fidedigna do trabalho ali desenvolvido. O sucesso desta medida foi de tal modo positivo que é cada vez maior o número de alunos que se auto propõem a estágios extracurriculares.
É importante que o Tribunal mantenha cada vez mais uma relação de proximidade com a sociedade de modo a que os cidadãos possam entender a dinâmica da atividade judiciária e sintam que este é um lugar onde podem fazer valer seus direitos e obter justiça. Em tempos de implementação da inteligência artificial a todos os níveis, é preciso dotar os Tribunais e todos os operadores judiciários de tempo. Tempo para poder parar, ouvir e permitir a compreensão dos problemas de quem recorre a Tribunal; tempo para possibilitar a mediação, explicar as decisões aos respetivos destinatários e permitir-lhes a sua interiorização. Nessa medida, é crucial reestruturar a
Justiça, tanto do ponto de vista legislativo como organizacional, criando as condições necessárias para valorizar quem exerce funções no Tribunal e assegurar que o possa fazer em condições adequadas.
Só assim os Tribunais, enquanto verdadeiros órgãos de soberania, poderão afirmar-se como expressão concreta do Estado na aplicação da justiça, sendo reconhecidos pelos cidadãos como instrumentos de pacificação social, de proteção de direitos e de promoção da dignidade humana.
Boletim OA – Como avalia o impacto da digitalização dos processos judiciais? Acredita que está a ser bem implementada? Que papel podem e devem os agentes forenses desempenhar na modernização do sistema judicial?
A evolução tecnológica e a necessidade de assegurar a sustentabilidade do planeta tornou inevitável a digitalização processual. São evidentes os benefícios daí decorrentes, desde o aumento da celeridade processual à melhoria no acesso aos Tribunais, contribuindo ainda para uma maior transparência e eficiência do sistema judiciário.
Porém, a digitalização do processo não poderá constituir a mera conversão do processo físico em eletrónico. É importante que haja uma verdadeira atualização/renovação das plataformas de modo a permitir uma melhor visualização do processo, a aplicação de um maior número de funcionalidades e uma mais rápida gestão processual. A título de exemplo, a possibilidade de poder aceder à documentação de uma forma dinâmica (através de hiperligações), permitir pesquisas por termos no processo, transformação automática de áudio em texto editável, sugestão de despachos pré-criados e editáveis, etc. Aliado a isto, impõe-se a própria automação do processo com a inserção de sistemas de contagem de prazos, juros, cálculo de pensões, atualizações, etc.
É ainda essencial apostar numa maior interoperabilidade com os sistemas utilizados pelos demais agentes forenses e entidades que interagem com o Tribunal, permitindo maior rapidez, qualidade e atualização da informação necessária; a importação para o processo judicial dos dados ou elementos provenientes desses sistemas, eliminando ainda a necessidade de efetuar e responder a ofícios ou digitalizar um qualquer documento.
São ainda inúmeras as limitações técnicas e a instabilidade, com recorrentes falhas de funcionamento dos sistemas informáticos, o que aliado à crescente insuficiência de recursos humanos, nomeadamente, nas secretarias judiciais e a falta de formação, compromete e atrasa a pretendida desmaterialização.
Ainda resta um longo caminho a percorrer não havendo, porém, dúvidas que a sua travessia é inevitável para que se consiga a prestação de um melhor e mais transparente serviço ao cidadão. Para o efeito, é necessário um maior investimento do Estado, não só no sistema judicial, como junto das entidades públicas que interagem com o Tribunal e também a tomada de consciência por parte de várias ordens profissionais forenses que esta tarefa deve ser desenvolvida em conjunto, porque nos afeta a todos, enquanto profissionais e cidadãos.
Boletim OA – A articulação entre os diversos intervenientes do sistema de Justiça — Magistrados, Advogados, Ministério Público, Oficiais de justiça — é essencial para o seu bom funcionamento. Que medidas concretas devem ser implementadas para fomentar uma cultura de maior diálogo e cooperação entre os agentes forenses (ex. fóruns interinstitucionais, ações de formação conjunta, instâncias de diálogo regular, etc.)?
A eficiência do sistema de Justiça assenta na cooperação entre os seus diversos intervenientes e na construção de relações institucionais sólidas no seio dos Tribunais, sendo estes pressupostos indispensáveis para assegurar a celeridade processual, a efetividade das decisões e, sobretudo, a humanização do atendimento ao cidadão.
Cada vez mais é necessário promover a interligação e o diálogo entre todas as classes de profissionais do foro, auscultar as perceções de cada uma e debater ideias, porquanto será desse confronto que se conseguirá prestar um melhor serviço ao cidadão. E essa tarefa é facilitada pelo facto de todas as Comarcas terem um Órgão de Gestão que amiúde contata com as várias ordens profissionais forenses.
A circunstância de, com a atual organização judiciária, cada Tribunal de Comarca ser constituído por um Conselho Consultivo, composto pelo Órgão de Gestão e representantes de vários operadores judiciários, dos utentes da Justiça e de municípios integrados na Comarca, permite o envolvimento de todos os elementos na criação e execução de atividades para os cidadãos e é demonstrativo do empenho no estreitamento dessa ligação Tribunal/Sociedade. É um órgão com funções consultivas que visa a participação ativa no sistema judiciário local e, da respetiva interação entre os seus diversos elementos, é possível manter um diálogo constante, regular e perceber os problemas e constrangimentos que afetam o funcionamento do Tribunal, das várias classes de operadores judiciários e dos utentes da justiça, permitindo ainda a discussão de possíveis soluções suscetíveis de melhorar as condições de trabalho de todos e um atendimento mais próximo a quem recorre aos respetivos serviços, reforçando ainda relações com parceiros institucionais e entidades locais.
No caso do Tribunal Judicial de Porto Este, aproveitando esta proximidade, é habitual promoverem-se conferências, reuniões, seminários e mesas-redondas subordinados a temas atuais e de relevante interesse jurídico. Esses espaços de reflexão constituem verdadeiros fóruns de partilha de conhecimento, onde é possível valorizar o saber e a experiência dos vários operadores judiciários, mas também integrar a contribuição de profissionais de outras áreas — como professores, médicos, psicólogos, técnicos e especialistas de diferentes domínios — cuja perspetiva enriquece o debate, aprofunda a análise das problemáticas em discussão e contribui para uma Justiça mais aberta, interdisciplinar e próxima da sociedade.
Acresce ainda que, não obstante a diferença e especificidade dos papéis desempenhados por magistrados e advogados no sistema judicial, a verdade é que a Justiça sairia claramente reforçada com a realização de ações de formação conjuntas, concebidas como espaços de diálogo e de cooperação. Esses momentos de partilha poderiam incidir, nomeadamente, sobre a análise e a discussão de boas práticas processuais, permitindo alinhar procedimentos, prevenir disfunções, promover maior eficiência na tramitação dos processos e, em última instância, contribuir para uma cultura judiciária mais coesa, transparente e orientada para a efetiva realização da justiça.
Boletim OA – Com a entrada de um novo ano judicial, que antevisão gostaria de partilhar com os Advogados sobre o rumo da Justiça para os próximos meses, tendo em conta os desafios do setor e o necessário reforço da confiança no sistema judicial?
Creio que a grande preocupação nos próximos tempos para todos os agentes judiciários será decidir qual o papel que desempenharemos, ou que quereremos desempenhar, perante a revolução tecnológica que vivemos. É hoje indiscutível a introdução da Inteligência Artificial (IA) em todos os campos da atividade humana, não merecendo ainda qualquer dúvida que esta permite um avanço espetacular ao nível de desempenho e eficiência.
Porém, são também enormes os desafios e os receios trazidos por esta tecnologia. É importante que a mesma se mantenha uma ferramenta inestimável de auxílio à nossa vivência em sociedade, mas sem que percamos a nossa liberdade de pensamento e o espírito crítico. A responsabilidade da sua criação e utilização é inteiramente nossa, enquanto humanos e, nessa medida, jamais poderemos perder o controlo sobre a mesma.
No domínio jurídico, um dos maiores desafios é garantir a conformidade deste mecanismo com os direitos fundamentais, sem jamais pôr em risco a independência e imparcialidade do Tribunal e o direito a um processo equitativo. Por outro lado, impõe -se evitar uma justiça automatizada, a desumanização do processo com sérios riscos de uma decisão injusta. É essencial que os algoritmos sejam transparentes, elaborados livres de preconceitos, sem permitir a manipulação da prova e que não haja uma delegação na IA das decisões humanas.
Cada situação/processo é única (o) porque envolve emoções, experiências pessoais e o contexto em que acontece. Por isso, precisa ser analisada por um juiz humano, já que esses detalhes costumam ser decisivos na hora de avaliar e tomar uma decisão. É o olhar crítico, a reflexão sobre valores e a sensibilidade ética que garantem que a decisão final — e a responsabilidade por ela — continuem sempre nas mãos das pessoas.
Esta transição para uma cultura de conhecimentos tecnológicos, sem subversão dos próprios fundamentos da Democracia e do Estado de Direito, implica, para além de uma regulamentação rigorosa por parte dos governos, uma formação de todos os atores judiciários a nível multidisciplinar que permita a sua qualificação tecnológica, crítica e ética na especifica atividade de cada um.
É evidente que a inteligência artificial vai transformar profundamente a forma como exercemos a nossa profissão. Por isso, é essencial termos consciência de que precisaremos de nos adaptar e, ao mesmo tempo, garantir que o julgamento humano continue sendo um processo interpretativo, que exige contextualização, intenção e consciência moral — qualidades que pertencem exclusivamente ao ser humano e nessa medida, nos tornam insubstituíveis.
Só assim será possível consolidar a confiança dos cidadãos na Justiça enquanto verdadeiro órgão de soberania e expressão essencial do Estado de Direito.


