Por Rafael Vale e Reis,
professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Advogado
A Lei da Procriação Medicamente Assistida (Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, ou Lei da PMA) fará, em breve, vinte anos.
Se os primeiros dez anos de vigência foram de grande acalmia, os seguintes estão a ser, no mínimo, fervilhantes. A PMA tem impulsionado o que considero ser uma verdadeira revolução no Direito da Família, mas este percurso tem sido problemático, a vários níveis.
No que respeita à gestação de substituição, admitida a partir de 2016, o Tribunal Constitucional detetou graves fragilidades no regime, o que o levou, no seu Acórdão n.º 225/2018, de 24 de abril, a declarar a sua inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
Seguiu-se um novo modelo de gestação de substituição, em 2021 (que não tem, ainda, aplicação prática, por falta de regulamentação legal), cujas soluções são também criticáveis, por não responderem adequadamente aos problemas de constitucionalidade do regime em matéria de acomodação de um eventual “arrependimento” da gestante, tema complexo no plano técnico e que divide opiniões.
Outro grande problema no contexto da PMA é o anonimato dos dadores de material biológico (óculos, espermatozoides e embriões).
A perspetiva tradicional que defendia o anonimato na dádiva desse material está a falir no plano internacional.
Foi crescendo o entendimento segundo o qual esta regra do anonimato tinha os seus alicerces em conceções estigmatizantes e redutoras, o que foi ganhando força à medida que a Ciência foi descobrindo, a propósito das pretensões individuais de conhecimento das próprias origens, que a negação do acesso à história pessoal tem, na generalidade das situações, consequências mais nefastas do que qualquer potencial vexame resultante da circunstância de se ter nascido numa família com problemas de fertilidade.
Assim, os ordenamentos jurídicos estrangeiros têm vindo a transitar para modelos sem anonimato (vejam-se os casos paradigmáticos do Reino Unido e da França, entre muitos outros).
Em Portugal, Lei da PMA, consagrou, na sua versão inicial, a regra do anonimato, embora em termos não absolutos. Nessa versão originária, o anonimato só poderia ser levantado, a pedido da pessoa gerada, em situações excecionais, quando se provasse, num processo judicial, existirem “razões ponderosas” para a revelação da identidade do dador.
Porém, em 2018, o Tribunal Constitucional, também no Acórdão n.º 225/2018, de 24 de abril, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral desse regime.
Seguiram-se alterações legislativas que aboliram o anonimato (Lei n.º 48/2019, de 8 de julho), procurando devolver a conformidade constitucional ao regime (as pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões podem obter junto do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida informação sobre a identificação civil do dador), mas que criaram outros problemas: ainda que transitoriamente, coexistem hoje, à luz da lei, dadores anónimos (nas dádivas antigas) e dadores não-anónimos. Este double track system transitório é muito duvidoso à luz do princípio da igualdade.
Há, assim, muito caminho a trilhar na PMA, tanto nos problemas clássicos, como nas questões mais inovadoras. Apenas a título de exemplo, lembro que, em breve, teremos de saber se aceitamos a terapia de substituição mitocondrial (já admitida no Reino Unido), que permite a utilização de material genético de três pessoas (e não apenas duas, como é habitual) para gerar uma criança.
Brave New World, dizia Huxley, há quase 100 anos!


