Por Paulo Guerra,
Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de Coimbra e autor de várias obras jurídicas, no âmbito do Direito de Família e das Crianças.
Está assente, no nosso subconsciente supranormativo, que, tendencialmente, toda a criança deve ser ouvida nos processos judiciais e não judiciais em que se discutem questões relacionadas com a sua existência.
Tal princípio da audição da criança traduz-se, como exemplarmente nos ensina Rui Alves Pereira:
(1) na concretização do direito à palavra e à expressão da sua vontade;
(2) no direito à participação activa nos processos que lhe digam respeito e de ver essa opinião tomada em consideração;
(3) numa cultura da Criança enquanto sujeito de direitos.
Estamos a falar de Crianças, não de candidatos à adultez, mas de cidadãos de pleno direito, em termos de gozo de direitos. E, por isso, é premente olhar-se nos seus olhos, sentir o seu sentir, auscultar a sua opinião, mesmo que não a tenhamos de seguir.
Apenas dois vetores de legitimação devem estar em causa aquando da tomada da decisão de ouvir uma criança – a sua idade e a sua maturidade para ser ouvida. Contudo, estes requisitos reconduzem-se a um só, em essência – o da sua maturidade para ser ouvida.
De facto, a idade não é senão um indício de obtenção pela criança dessa mesma maturidade para ser ouvida, não funcionando de, per si, como factor eliminatório para essa decisão de ouvir uma criança, a não ser nos casos flagrantes de tenríssima idade, como parece óbvio. Contudo, prévio a esta decisão é saber se é conveniente ouvir uma criança face ao assunto específico a abordar.
De facto, na nossa opinião, pode e deve o tribunal deixar de ouvir uma criança quando o assunto não contende direta e relevantemente com o seu querer e é lateral relativamente aos seus anseios, sob pena de poder vir a sofrer mais danos do que ganhos com esta diligência. Contudo, se assim decidir, o foro deverá explicitar em despacho fundamentado a razão dessa não audição. O mundo mudou também em Portugal a este nível – e mais crianças estão a ser ouvidas nos nossos foros.
Direi mais. A audição da criança deveria apenas ser efectuada por quem tem específicos conhecimentos científicos e técnicos para o efeito: o psicólogo, o pedopsiquiatra ou um técnico habilitado para o efeito.
Continuo a opinar que os operadores judiciários apenas devem propor perguntas sobre factos mas não sobre a rigorosa forma de as fazer.
Esta inquirição, desta forma, seria levada a cabo por quem sabe perguntar, com prévia indicação do objecto por Juiz, MP e advogados e eventual esclarecimento posterior, mas sempre fundamentado.
De facto, não é a maior ou menor intuição do juiz ou o seu maior ou menor empenho na leitura de alguns textos sobre a problemática que deve bastar para ser levada a cabo uma optimizante inquirição de uma criança. E nem sequer precisamos de mudar a lei para assim se agir.
A regra é, pois, ouvir a criança, se for considerada conveniente tal audição. A não audição da criança apenas se justificará em três situações, devendo sempre ser sempre motivada e fundamentada:
1ª- se ela livremente manifestar interesse em não ser ouvida;
2ª- se for considerado inconveniente ouvir a criança face ao assunto em discussão;
3ª- se for reconhecido que ela não dispõe de capacidade de discernimento ou de maturidade para o efeito.
Aqui chegados, direi que a falta de audição, quando ela é devida, ou a falta de justificação para a sua não concretização, afectam a subsistência da decisão que não a admitiu.
Mas qual o vício processual a invocar? Demos luz a um aresto fundamental, o Acórdão do STJ, datado de 14/12/2016, e proferido no Pº 268/12.0TBMGL.C1.S1 (já chamado de «marco para o Direito das Crianças») – aí se decidiu que «V – A falta de audição da criança afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais».
Deixar de ouvir uma criança neste jaez é «matar» um seu direito substancial, colado à sua pele com a própria «essência das coisas».
Ouvir uma criança em tribunal não é um acidente de percurso – é um direito inalienável de toda a criança, para o exercício do qual, nesta sede, não tem de ser representado por terceira pessoa. Isso faz parte da essência dos seus direitos. E bastará ao tribunal afirmar essa essência e substância para declarar que a omissão da audição de uma criança com maturidade para o efeito, quando conveniente, afeta a subsistência da decisão que não a admitiu, não por força da constatação de uma nulidade processual civil de natureza secundária, mas por aplicação direta do princípio básico (de essência) da existência de uma criança – ter direito a ser ouvida por quem vai decidir relevantes aspetos da sua vida.
Pode ser que assim mudemos o mundo, pelo menos, o daquela criança que nos pede uma chance para ser bem ouvida em tribunal.


