O conceito de discriminação ganhou uma nova amplitude, encontrando-se umbilicalmente ligado ao conceito de vulnerabilidade. Atingindo um elevado grau de subjetividade, a discussão social tem assumido novas proporções, e a dificuldade em determinar e destrinçar o que configura ou não, discriminação, agiganta-se. A falta de autonomização legal desta matéria e a ausência de formação individualizada e voltada para a compreensão do princípio da igualdade e da não discriminação contribuem para o quadro descrito, afigurando-se, neste âmbito, de assaz relevância o papel do advogado que, enquanto parte ativa na boa administração da justiça, deve estar preparado para os desafios suscitados pelos novos ventos da discriminação.
INTRODUÇÃO
Discriminação e vulnerabilidade
A realidade atual prende-se com a multiplicidade de relatos de discriminação que fazem eco no nosso país, e que amiúde, veem nele o seu som direto. A compreensão do conceito vai muito para além do que simplesmente se ouve: o perigo da informação em massa é, frequentemente, o do revés da desinformação.
A discriminação, conceito de difícil concretização e em constante evolução, assume agora a vertente da vulnerabilidade: a suscetibilidade de cada um, de forma permanente ou temporária, enquanto ser individual e inserido em coletividade, estar exposto ao sofrimento e à produção de danos na sua essência humana, na sua dignidade. E esta dimensão dá que pensar: afeta-nos no âmago, faz-nos questionar se em determinado momento da nossa existência, estivemos, estamos ou poderemos estar expostos a tal sofrimento.
A evolução do sentido de coletividade levou a que fossem criadas leis que visam ordenar a vida em sociedade, não olvidando o respeito pela individualidade de cada um. A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, viria a ser o mote para a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana em diplomas legislativos. Em Portugal, a dignidade encontra no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa um dos seus alicerces: o princípio da igualdade e da não discriminação, segundo o qual todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei, não podendo ser privilegiados nem prejudicados em virtude da sua “raça”, etnia, nacionalidade, religião, convicções políticas, género, definição e orientação sexual, idade, incapacidade e condições socioeconómicas.
Vislumbramos, nesta fase, pelo menos três conceitos que se imiscuem: dignidade, igualdade, discriminação. A palavra dignidade, do latim dignitas, remete-nos sobretudo para a moral e o respeito que a cada pessoa humana, pelo facto de o ser, lhe é inerente. Já a igualdade e a discriminação, têm um pouco mais que se lhe diga. O adâmico princípio da igualdade aristotélica remete-nos para a trivialidade da proibição da discriminação negativa, isto é, não poderá haver tratamento igual perante uma situação de desigualdade, nem tratamento desigual perante situações de igualdade. Na Lei Fundamental do nosso país, o princípio da igualdade, colhendo dessa fonte de inspiração, coaduna-se com a dignidade social de cada um, e com os valores e padrões materiais da Constituição, orientando-se por princípios de proporcionalidade e equidade, nas vertentes de proibição do arbítrio, proibição de discriminação e eliminação de desigualdades.
A vulnerabilidade enquadrar-se-á, assim, numa categoria de subjetividade.
DESENVOLVIMENTO
Alísios da discriminação
O quotidiano confronta-nos com a diferença entre o plano do dever ser e o plano do ser: escrutinou-se o beijo não consentido de Rubiales, o comentário inusitado do Presidente Marcelo, o pioneirismo das wc’s neutras e inclusivas e a alteração da linguagem. Colocam-se todos os comportamentos censuráveis no mesmo saco, no sentido mais vasto de discriminação. E busca-se a implementação da uniformidade, sem se compreender o desvio-padrão. Não se escrutina, no entanto, a falta de cumprimento do regime de acessibilidade aos edifícios e estabelecimentos que recebem público, via pública e edifícios habitacionais, que leva a que o José tenha de aguardar todos os dias pela amabilidade da vizinha a fim de conseguir ultrapassar a escadaria à porta do prédio, em virtude da sua mobilidade reduzida; ainda menos releva que a Maria, jovem de grandes sonhos e aspirações, se veja à mercê dos abusos de uma sociedade que não a protege e de um país que não a acolhe, por não lhe garantir o acesso à educação, à saúde e à justiça que deveria ser seu por direito; ou a Arlinda que, por não ter capacidade económica esperou 7 horas nas urgências de um hospital público sem ser atendida e veio a falecer em casa. E estes são meros exemplos simples e académicos, de personagens imaginárias que, por diversas vezes, assumem a versão física na vida real, onde têm o papel principal.
Não será este espelho da realidade, também o reflexo da discriminação, na perspetiva da vulnerabilidade?
É esse o cerne da questão atual. Focamos a discussão nos assuntos que estão na ordem do dia, e camuflamos o que dá menos audiência. Justificamos tudo ao abrigo da palavra Inclusão3 , reforçamos e enfatizamos positivamente a diferença, e tentamos igualar o que não é nem teria de ser igualável. Na verdade, todos somos diferentes, e é essa a base da discriminação: ninguém pode ser prejudicado ou beneficiado em virtude dessa diferença, enquanto vulnerabilidade.
Não será também discriminação aquela que se encontra a coberto de práticas anti discriminatórias nas quais tudo é permitido sob a veste da igualdade?
A não discriminação parece ser tão complexa, ao ponto de residir no mais básico e elementar princípio da nossa existência: o do respeito pela condição essencial que todos assumimos, a condição humana.
O papel do Advogado
Enquanto garante da boa administração da justiça, o Advogado desempenha um papel fundamental na compreensão e não banalização do conceito de discriminação, associado ao aconselhamento jurídico e ao desenvolvimento especializado no âmbito destas matérias.
De facto, não existe uma disciplina ou lecionação na formação de base, voltada unicamente para a aprendizagem, sensibilização e discussão jurídica destas questões. Não existe um regime legal uniformizado e unívoco, nem uma compilação das questões mais prementes que se têm proporcionado.
A própria profissão acarreta ainda alguns estereótipos e elitismos associados, revelando críticas às fragilidades de um sistema que revela a vulnerabilidade de alguns dos seus membros.
O Advogado, intérprete da Lei e parte ativa na promoção da luta pelos direitos fundamentais das Pessoas, deve promover a compreensão do conceito da discriminação e a formação sobre o mesmo, o despiste de situações de discriminação e o adequado tratamento jurídico, tendo em vista a redução das desigualdades, e norteando-se pela primordial ratio da sua intervenção: a de um mundo mais justo e equitativo.
CONCLUSÃO
Os ventos da discriminação têm irrompido em massa, criando dúvidas e preocupações crescentes sobre a garantia do direito fundamental à não discriminação de cada uma das Pessoas e o respeito pela sua Dignidade Humana.
Garantir o respeito por esse Direito Fundamental passará pelo desenvolvimento e compreensão transversal do próprio conceito, para o qual será essencial a conjugação de distintas dimensões, entre as quais a dimensão social e a dimensão jurídica.
No que à dimensão jurídica concerne, o Advogado assumirá um papel fundamental, enquanto parte ativa na administração da justiça e na promoção da igualdade de direitos, sendo relevante a sua formação e especialização jurídica de base, e o aprofundamento destas matérias no âmbito das suas funções.
E não menos importante, será o papel do Cidadão, a quem caberá contrariar a corrente da desinformação, e diligenciar pelo aconselhamento onde ele poderá ser efetivamente prestado.
Afinal, ostentar como única solução a igualação, não esbaterá a graciosidade da Singularidade de cada um?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Moreira, A. J. (2020). Tratado de Direito Antidiscriminatório. Contracorrente. São Paulo.
Martinez, F. R., Neto, L., Leão, A., Carvalho, A. S., Ibañez, J. G. e Pedro, R. T. (2021).
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Sottomayor, M. C. (2021). Vulnerabilidade e Discriminação. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa- Numero Temático: Vulnerabilidade(s) e Direito. Ano LXII, Número 1, Tomo 2, 705-732
[1] Designação atribuída aos ventos predominantes que impulsionaram a globalização, tendo sido utilizados em benefício dos navios de vela, desde a época dos Descobrimentos, para cruzarem os oceanos.
[2] O masculino genérico utilizado neste artigo abrange todas as pessoas que exercem a advocacia. Não existindo ainda um consenso na linguística, e considerando que um género neutro não resolve o problema, optamos por manter o género primitivo.
[3] Atentemos, a título de exemplo, nos recentes desenvolvimentos da cultura Woke em Portugal, que têm assumido uma vertente castradora e de censura, ao contrário do que seriam os seus propósitos iniciais.