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Por João Massano,

Bastonário da Ordem dos Advogados

 

Entrar num tribunal de família é atravessar um limiar onde o Direito deixa de ser um exercício de códigos e se torna pulsação humana. Ali, o que está em causa não é apenas a lei — é a vida, tal como ela é: desfeita, reconstruída, ferida. O Advogado de família não é mero técnico. É presença, é bússola.

Há quem veja no Direito uma máquina fria, mas a Advocacia encontra o seu sentido mais pleno precisamente no que escapa ao cálculo: a dignidade de quem ali chega em fragmentos.

Nas conferências da Ordem, ouvindo magistrados e colegas, há uma pergunta que regressa: pode haver Justiça sem advogado? Os números dizem que sim, demasiadas vezes. Mas a vida prova o contrário. Onde não há representação, cresce o desamparo.

  • Pensemos na caducidade das ações de investigação de paternidade: dez anos após a maioridade. Dez anos para saber quem se é. O relógio vence o sangue. O Tribunal Constitucional tem olhado para isto com a dúvida necessária: pode o tempo roubar um Direito que nasce com o coração de cada pessoa?

O Direito da Família é atravessado por paradoxos como este. Entre o testamento vital e a eutanásia, entre o desejo de morrer com dignidade e o medo de legislar sobre o fim. O testamento vital não é uma porta aberta — é uma mão estendida. Um gesto de autonomia que pede do Advogado a escuta mais fina: a do silêncio antes do último sim.

No equilíbrio impossível entre família e trabalho, a lei europeia manda conciliar, mas o país continua exausto. Pais com medo de pedir licenças. Mães que regressam e perdem o lugar. Famílias que se desdobram para sobreviver à rotina que lhes devora o amor. Defender estes Direitos é mais do que cumprir normas: é impedir que a vida se quebre onde devia repousar. O novo regime do maior acompanhado tentou humanizar o que antes era exclusão.

Nada sobre nós, sem nós.

A vontade, mesmo frágil, deve orientar. O Direito começa quando o outro ainda é ouvido.

  • Nas salas dos tribunais, há crianças que entram em silêncio. Que falam pouco, mas dizem tudo. Falamos de “ouvir a criança”, mas a pergunta é: quem a escuta de verdade? O advogado devia ser a sua voz, a que não se dobra ao procedimento nem ao cansaço burocrático.

A ciência trouxe novas perguntas, novas dores. A procriação medicamente assistida rasga fronteiras éticas e familiares: quem é pai, quem é mãe, quem decide? O Direito chega sempre depois da vida, mas tem o dever de a compreender.

Em 2026, a Ordem dos Advogados faz cem anos. Um século de vozes erguidas. Um século em que a Justiça foi casa, abrigo, trincheira. O novo logotipo do centenário junta o que somos: tradição e futuro. A Advocacia de Família é isso — o ponto onde o humano se torna matéria de Direito. Aqui, o amor e a raiva convivem nas mesmas frases, o nascimento cruza-se com a morte, a esperança com a sentença.

Defender é verbo de coração e de lei. No tribunal, nas casas, nos lugares onde a palavra “família” ainda significa pertença. A responsabilidade que sobre nós pesa é, portanto, imensa. Somos chamados a ser não apenas conhecedores de códigos e artigos, mas guardiões de dignidade, defensores de Direitos fundamentais, vozes dos que não têm voz.

O Direito da família há de evoluir. Há de incorporar as realidades sociais do século XXI, há de proteger as minorias que por vezes são negligenciadas, há de reconhecer os novos modelos de Família que emergem nas nossas sociedades.

E nesta evolução, a Ordem dos Advogados, através de cada um dos Colegas, estará presente, presente e atenta. Com gratidão pelo trabalho que cada dia realizam nos tribunais, nas mediações, nas consultorias, nos processos que mudam vidas.

Muito obrigado!

 

 

 

 

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