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Por Cláudia Madaleno,

Doutorada em Direito e professora assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) desde 2015.

 

A Convenção n.º 1 da OIT, sobre a duração do trabalho (1919) estabelece como regra a duração máxima do trabalho diário em oito horas, com o limite de 48 horas semanais. A lógica de oito horas para trabalhar, oito horas de repouso e oito horas de lazer passou assim para força de lei, com repercussões em todos os Estados que a ratificaram, incluindo Portugal[1].

Mais de cem anos volvidos, a fixação de limites ao tempo de trabalho continua a ser um desafio, em especial em face das novas formas de trabalho, que não se mantêm nas fronteiras espaciais da empresa, mas antes invadem o espaço de atuação privada do trabalhador. Este fenómeno é ainda mais exigente quando pensamos no teletrabalho (cada vez mais frequente), ou na constante ligação à empresa, através de canais digitais.

Apesar de alguns esforços, de que é exemplo o recente artigo 199.º-A do Código do Trabalho (CT), debalde a lei e as convenções coletivas têm conseguido acompanhar a velocidade da evolução social do trabalho. Mais, apesar destes esforços, é muitas vezes o aspeto cultural que continua a impedir a efetivação prática de um conjunto de direitos estabelecidos na lei. De facto, nas últimas décadas, é notável o aumento da duração das licenças parentais, a criação de modelos que incentivam a partilha da licença parental inicial, o recurso a formas de trabalho flexível ou redução do tempo de trabalho para trabalhadores com responsabilidades parentais e o aparecimento de novos regimes de tutela, como é o caso do trabalhador cuidador[2]. Acontece que, em boa parte dos casos, esta evolução legislativa não foi acompanhada pelo desenvolvimento subjacente de uma cultura de trabalho que acolha as responsabilidades familiares (e não apenas as parentais).

Apesar deste avanço, muito ainda fica por fazer, tanto ao nível da parentalidade, como noutras dimensões da família.

Em primeiro lugar, há que promover uma verdadeira igualdade para os trabalhadores com responsabilidades parentais. Desde logo, nem todas as licenças são equivalentes à prestação de trabalho efetivo, situação que deveria ser repensada[3]. Mesmo nos casos em que o são, não existem medidas que permitam equiparar o tempo da ausência aos resultados obtidos pelos trabalhadores que não estão na mesma situação e cuja produtividade pode conduzir a um futuro melhoramento das suas condições de trabalho. Um trabalhador no gozo da licença parental não produz: a lei considera que é como se estivesse a prestar trabalho efetivo, mas na verdade não o está, por isso nesse período não tem resultados que possam ser valorizados num possível processo de promoção, apesar do disposto no artigo 35.º-A CT.

Em segundo lugar, numa sociedade cada vez mais caracterizada pelo envelhecimento, escasseiam soluções que permitam às famílias assumir os cuidados pelos pais ou outros familiares que necessitem do seu apoio, que poderiam passar pela criação de licenças, similares às previstas para a parentalidade e que coexistiriam com a alternativa do recurso ao estatuto do cuidador informal[4]. Com efeito, apesar do significativo avanço que este regime representa, ainda há limitações, decorrentes quer dos seus requisitos, quer do regime aplicável.

O direito à família, constitucionalmente consagrado, deve ser mais do que um catálogo legal de licenças ao nível da parentalidade. Por um lado, exige uma articulação constante com o desenvolvimento da própria sociedade, e, por outro, não se basta com essa mera consagração legal, impondo medidas que promovam uma efetiva evolução cultural que permita, sem receio de discriminações, efetivar estes direitos no trabalho. É, pois, muito mais do que discutir a redução da dispensa de trabalho para amamentação, ou a eliminação da falta por luto gestacional. Os trabalhadores de hoje (pais e filhos) não têm tempo para a família e isso está a ter consequências devastadoras para a sociedade. Urge repensar num modelo novo, uma empreitada que não pode integrar apenas juristas, mas sim profissionais de todas as áreas que podem contribuir para uma mudança deste estado de coisas.

 

[1] O período normal de trabalho máximo diário e semanal consta do artigo 203.º do Código do Trabalho, que está também em linha com a Diretiva 2003/88/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho.

[2] Referimo-nos ao regime da parentalidade, constante dos artigos 37.º e seguintes do CT, e do trabalhador cuidador, nos artigos 101.º-A e seguintes do CT.

[3] Nesse sentido, confronte-se o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 65.º do CT, por oposição ao n.º 6 do mesmo preceito.

[4] Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 20/2024, de 8 de fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 86/2024, de 6 de novembro.

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