A conferência internacional “A arte saiu à rua: a tutela jurídica do graffiti” decorreu no dia 18 de Novembro. Clara Sarmento da Comissão Científica escreve sobre esta nova realidade.
A street art é um movimento artístico que, não sendo propriamente novo, adquiriu uma especial visibilidade e simbologia desde o início da pandemia. Durante os dois confinamentos nacionais, e nos meses de incerteza que entre eles mediaram, a street art converteu-se gradualmente num elemento familiar, marcando a paisagem da cidade contemplada com renovada atenção.
A equipa de investigadores do projeto StreetArtCEI, desenvolvido desde 2017 pelo CEI – Centro de Estudos Interculturais do ISCAP, Politécnico do Porto – decidiu então utilizar o seu conhecimento do terreno para catalogar os percursos da street art surgida nas ruas do Porto durante as cronologias da pandemia e do confinamento. Assim nasceu Street Art Against Covid. A experiência de trabalho de campo, recolha e catalogação de imagens e criação de rotas, obtida em StreetArtCEI, ganhou, em Street Art Against Covid, um carácter de missão. A missão de mostrar ao mundo, através do alcance internacional dos canais digitais do projeto, que a street art não cessou de se reinventar nas ruas do Porto e que o potencial turístico da cidade está mais vivo do que nunca.
Com este objetivo, Street Art Against Covid localizou, fotografou, catalogou e mapeou as manifestações de street art criadas durante os meses de confinamento, bem como as intervenções alusivas à crise pandémica. No verão de 2021, o website de Street Art Against Covid, de acesso livre e em constante atualização, contava já com mais de 300 imagens, distribuídas por cerca de 80 Pontos de Interesse (POI), organizados em 7 rotas: Cidade Alta, Boavista, Centro Histórico, Porto Oriental, Rio Douro, Matosinhos e SNS (intervenções de homenagem aos profissionais de saúde). As rotas são traçadas sobre mapas online, onde cada POI abre para uma galeria das imagens aí localizadas, e todo o projeto está acessível a partir de www.streetartcei.com
A street art tem despertado a atenção de instituições e de investigadores das mais diversas áreas, estabelecendo em seu redor toda uma complexa rede de interações paradoxais com entidades públicas e privadas. Desta complexidade advém grande parte do seu fascínio. Comecemos pelo facto de muitas das obras coligidas em Street Art Against Covid possuírem um caráter duplamente transgressivo, pois são (segundo o discurso vigente) formas de arte ilegais que, ao mesmo tempo, resultam de violações do confinamento por parte dos seus autores. De igual modo complexo é o facto de o acervo digital conservar em paridade tanto as obras aprovadas, comissionadas e assinadas, como as obras ilegais, livres e anónimas.
O trabalho de campo da primeira etapa de Street Art Against Covid trouxe ainda à tona uma terceira camada de transgressão, sob as duas já mencionadas. A radical desertificação das ruas durante o primeiro confinamento suspendeu momentaneamente a vigilância entre pares que sustenta os poderes atuantes na street art. Isso proporcionou ações de iconoclastia por parte daqueles que conseguiram transgredir, triplamente, a lei, o confinamento e a hierarquia. Obras aparentemente intocáveis de autores reconhecidos foram alvo de bombing e grafitadas. Traços desconhecidos e/ou rudes, de principiantes, surgiram em espaços de grande visibilidade, até aí feudo dos consagrados. Por outro lado, também os grandes nomes da street art, suspensos os compromissos internacionais, voltaram-se para a cidade de origem e voltaram a ilustrá-la em quantidade e qualidade, tanto durante como logo após o confinamento, nem sempre nos locais mais habituais. Com efeito, a street art ainda enferma de preconceitos arcaicos de poder e misoginia e tarda a demolir o ghetto onde o patriarcado tenta encerrar as artistas, dentro do ghetto mais lato onde a sociedade tenta encerrar a street art.
Street Art Against Covid – tal como StreetArtCEI, o projeto que o aloja – também prospera dentro de vários paradoxos construídos por si mesmo, pois é um projeto desenvolvido por uma instituição pública que, ao mesmo tempo, colige, preserva e legitima produtos culturais que danificam o património público e privado. E, contudo, despertou o interesse dos media e foi premiado por uma instituição bancária (prémio Santander Universitário UNI-COVID19, para iniciativas académicas com impacto social). Levou a que instâncias de poder local investissem na criação de percursos de street art, ou seja, em obras cuja eliminação essas autoridades patrocinam em simultâneo. Este paradoxo das instituições não faz mais do que reproduzir a propensão cultural para a domesticação do marginal, paradoxo do qual todos os intervenientes no projeto estão bem cientes.
Street Art Against Covid é, por isso, um projeto intercultural, que se desenrola numa zona de fronteira entre o legal e o ilegal,
onde os investigadores desempenham o papel de mediadores, percorrendo campos discursivos em interseção permanente.
Na realidade, há muito que a street art é um território de paradoxos, enquanto arte pública cada vez mais privatizada, símbolo da lucrativa mercantilização das culturas marginais e do hiperconsumo das culturas visuais, que a internet faz correr à velocidade da luz. A simultânea elitização e massificação da street art contradiz-se constantemente: a transição do graffiti ilegal para o graffiti artístico; a metamorfose dos vândalos perseguidos em artistas consagrados; a performatividade mediática da transgressão; a segurança, vigilância e controlo (censura?) na produção de obras de rua que logo transitam para galerias e outros espaços de experiências museológicas pop. A street art é uma dádiva à cidade, mas o simbolismo da dádiva – recordemos Marcel Mauss – provoca tanto atração como repulsa, tal como tudo aquilo que nos arranca do torpor e nos desperta para a necessidade de intervir no espaço (ainda?) público. Por isso, a street art é sempre política, nem que seja pelo facto de ser ontologicamente transgressiva e nos obrigar a olhar, ver e reparar naquilo que deveria ser invisível.
A street art, enquanto alternativa potencialmente democrática e participativa, é um agente crítico, transformador e dinamizador da cidade, evidente em locais tão díspares como Lisboa, São Paulo, Berlim, Porto, Jacarta, Hong Kong e Istambul, num paradigma geográfico em expansão global. Através da street art, a cidade é personificada como falante e metaforizada enquanto discurso e espaço de comunicação. E, paradoxalmente, tanta da marginalidade associada à street art decorre do secretismo da atividade, do mutismo dos autores, da sua linguagem impenetrável e imprevisível. Também paradoxal será a desmaterialização da street art – por definição forjada no mais concreto dos materiais: a cidade – ao tornar-se bem de consumo global através da internet, estrategicamente utilizada por inúmeros artistas graças à visibilidade que proporciona.
Street Art Against Covid é também ele um projeto digital, que transporta as imagens do muro para o ecrã. Mas sabemos que a propagação viral da street art nas redes sociais desperta nos utilizadores a vontade de explorar os territórios reais que a acolhem. E é esse o grande objetivo-missão de Street Art Against Covid, razão pela qual o repositório de imagens está organizado em rotas praticáveis, turísticas e populares até, se assim o quisermos entender. O virtual materializa-se quando o utilizador da web se transforma em utilizador do espaço urbano. Ao atrair visitantes, a street art patrocina a recuperação da cidade, renova o interesse estético e a dignidade de áreas degradas e/ou periféricas e contribui para a resistência do Porto às sucessivas crises, das quais a crise pandémica foi só a mais recente.