DISCUTIR | A Europa
Brexit e a resolução de litígios em matéria civil e comercial
Em face da saída do Reino Unido da União Europeia, muitas questões novas, ainda não inteiramente resolvidas, continuam a surgir. De entre as áreas em que, com relevo particular para os Advogados, se farão sentir os efeitos do Brexit, encontra-se a cooperação judiciária em matéria civil e comercial.
Desde os anos sessenta do século passado, foi sendo construído um espaço europeu de justiça de crescente amplitude e importância. O primeiro passo assinalável foi dado com a Convenção de Bruxelas de 1968, relativa à cooperação judiciária e o reconhecimento e à execução de decisões estrangeiras, Convenção essa a que os Estados-Membros da atual União Europeia se foram sucessivamente juntando, com efeitos, no caso de Portugal, a partir de julho de 1992.
Até que, com o Tratado de Amesterdão, de 1997, as instituições eurocomunitárias começaram a produzir atos legislativos respeitantes a estas matérias. Surgiu o Regulamento n.º 44/2001, comummente chamado “Bruxelas I”, como que “transformando” em ato normativo da União a Convenção homónima; ato esse que foi reformulado em 2012, com início de aplicação em 2015, por meio do Regulamento n.º 1215/2012 (informalmente chamado “Bruxelas I a” ou “Bruxelas I bis”).
Isto significa que, da perspetiva portuguesa, foram sendo estes os diplomas que sucessivamente enquadraram a resposta a dar às questões surgidas, nas relações entre pessoas domiciliadas em Portugal e no Reino Unido (ou com outras conexões relevantes a estes países, neles especificamente determinadas), sobre, em primeiro lugar, quais os tribunais competentes para dirimir litígios entre essas pessoas, e, em segundo lugar, quais as condições de que dependeria a produção de efeitos, em Portugal, de uma sentença proferida por tribunal inglês (e vice-versa).
Com o Brexit, o xadrez normativo alterou-se. Atentemos no Acordo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia: em situações que envolvam o Reino Unido, o Regulamento Bruxelas I bis apenas se continuará a aplicar, essencialmente, às ações propostas antes do termo do período de transição, isto é, 30 de dezembro de 2020, bem como ao reconhecimento e execução de decisões proferidas em ações judiciais intentadas antes desse mesmo termo, tanto no Reino Unido como nos atuais Estados-Membros.
Esta circunstância vem gerando uma assinalável incerteza, ainda não totalmente superada, acerca das fontes normativas que, efetivamente, permanecem em vigor nas situações que envolvam aquele Reino. Se a sociedade com sede no Funchal vender certa mercadoria, ou prestar determinado serviço, a um cliente domiciliado em Edimburgo, onde encontraremos as regras que definem quais os tribunais a que a sociedade pode recorrer para demandar o cliente britânico inadimplente? E qual, ao invés, o valor a reconhecer, em Portugal, a uma sentença escocesa, proferida já em 2021, que condene a sociedade funchalense?
As dúvidas vêm-se acumulando. Escrevendo estas linhas em meados de fevereiro de 2021, não é possível fornecer uma resposta concludente quanto às fontes em vigor: para termos uma ideia panorâmica, tem-se questionado, desde logo, se a referida Convenção de Bruxelas de 1968 não voltará a estar em pleno vigor (uma vez que essa vigência nunca cessou verdadeiramente, dado que há territórios de Estados-Membros que foram excluídos dos regulamentos europeus subsequentes, que no seu texto a salvaguardam expressamente). Trata-se de uma hipótese que as autoridades de ambos os lados do Canal da Mancha têm vindo a afastar, uma hipótese, aliás, de duvidosa compatibilidade com a umbilical relação entre essa Convenção e o próprio direito da União Europeia, para além de porventura inoportuna; de todo o modo, é uma questão de direito internacional público ainda a clarificar. Também se questiona se, diferentemente, não deverá ser a Convenção de Lugano de 2007 o lugar certo para o Reino Unido se inserir: falamos de uma Convenção que, nessa data, veio substituir a Convenção de Lugano de 1988, sobre as mesmas matérias, unindo os Estados-Membros a vários países da Associação Europeia do Comércio Livre, com o que se criou um regime jurídico paralelo de cooperação judiciária. Ora: o Reino Unido manifestou, em abril de 2020, a sua intenção de a ela aderir, com o que se desencadearam os trâmites para que essa adesão tenha lugar, exigindo-se agora a obtenção de um acordo unânime das partes contratantes para que tal seja possível. Outras possibilidades ainda, já lançadas para a discussão, passam pela ratificação da Convenção HCCH de 2 de julho de 2019, que todavia diz respeito apenas ao reconhecimento (e não também à competência internacional), ainda que o seu âmbito material de aplicação e o fôlego das suas soluções apresentem diferenças importantes perante as regras de Bruxelas; ou ainda pela celebração de um tratado bilateral, entre Reino Unido e a União Europeia, que viesse eliminar todas as dúvidas.
Em face desta incerteza,
um dos instrumentos que pode favorecer a segurança jurídica de particulares e empresas é a celebração de pactos de jurisdição, atribuindo-a aos tribunais de um certo Estado
(a par, naturalmente, do recurso, hoje também frequente, a convenções de arbitragem). Se é verdade que as regras anteriormente definidoras da admissibilidade, validade e eficácia desses pactos, que se encontravam no Regulamento Bruxelas I bis, deixaram de se aplicar com respeito ao Reino Unido, dir-se-á que, com o devido aconselhamento, as partes poderão incluir nos seus contratos cláusulas de eleição de foro que respeitem as exigências de validade e eficácia dos diversos instrumentos potencialmente aplicáveis. Um deles, que hoje vincula a União Europeia e o Reino Unido, é a Convenção HCCH sobre os Acordos de Eleição do Foro, de 30 de junho de 2005.
Perante este cenário, será avisado que os agentes económicos portugueses com ligações ao Reino Unido procurem reduzir a incerteza acerca dos tribunais internacionalmente competentes, em matéria civil e comercial, através destes pactos, assim procurando anular o risco de virem a ter que litigar em tribunal diferente daquele que, houvessem considerado a questão, teriam escolhido.