O I Congresso dos Advogados Portugueses
50 anos depois, o Delegado ao I Congresso dos Advogados Portugueses e Advogado Dias Ferreira deixa-nos o seu testemunho sobre este evento marcante
O ano de 1972 foi marcante na história da advocacia portuguesa em geral e, em particular, para mim. Foi nesse ano, entre 16 e 19 de Novembro que se realizou o 1.º Congresso Nacional dos Advogados e, pouco mais de três meses antes, a 3 de Agosto, obtive a inscrição na Ordem dos Advogados. Tudo se passou, portanto, 50 anos.
50 anos são dois terços da minha vida e, no entanto, parece que tudo se iniciou há tão pouco tempo, pesem embora as modificações profundas que sofreu a Justiça em Portugal e, em particular o exercício da advocacia. Nem sempre no melhor sentido!…
Meu Pai, o meu ídolo de advogado, também exerceu advocacia durante mais de 50 anos, designadamente, até ao dia 10 de Junho de 1986, data em que sofreu um avc, na véspera de um julgamento, que seria a causa do seu falecimento quase um ano depois, a poucos dias de perfazer 79 anos de vida. Dois terços da vida exclusivamente dedicados à advocacia, que exerceu com rigor e sem qualquer transigência no que respeita as regras da deontologia profissional, para as quais, hoje em dia, se olha como peças de um museu. Também dedicou alguns anos da sua vida profissional à Ordem dos Advogados, no Conselho Distrital de Lisboa e no Conselho Superior, de que aliás foi Vice-Presidente e, posteriormente, Presidente. Chegou a ser convidado para se candidatar a Bastonário, mas, para grande desgosto meu, recusou.
Sabendo-se que havia tido a honra de ter sido um dos Delegados a esse histórico I Congresso Nacional, convidaram-me a dar testemunho sobre esse momento de afirmação da advocacia na sociedade civil assim como de alguma história ou episódio que se tenha destacado nesses célebres dias de Novembro.
Não preciso de dar testemunho sobre a afirmação da advocacia na sociedade portuguesa nesse momento, porque é sabido que os advogados, mesmo nos momentos mais difíceis anteriores ao 25 de Abril, sempre exerceram a profissão com enorme coragem e independência na defesa dos direitos fundamentais do homem, sofrendo muitas vezes na pele, essa sua coragem na luta pela liberdade, pela democracia e pelo Estado de Direito. Essa afirmação teve o seu reflexo quando da revolução de Abril onde desempenharam papel importante, de que se destaca a nomeação para Primeiro Ministro do 1.º Governo Provisório, do Bastonário, Professor Adelino da Palma Carlos. E olhando as fotografias do Congresso e da Assembleia Constituinte e das primeiras Assembleias da República, encontramos muitas caras comuns que nos trazem enormes saudades pela elevada qualidade tanto na profissão como enquanto deputados ou ministros.
Permitam-me, pois, que, face a essa evidência, tenha uma nota pessoal sobre esse momento vivido enquanto um jovem e recentíssimo advogado, que, em Novembro de 1972, era também Aspirante a Oficial Miliciano num Quartel em Tavira, e com escritório aberto naquela cidade. Não posso deixar de ter aqui uma palavra de agradecimento e saudade para com o Comandante, Coronel Melo de Oliveira, que assumiu toda a responsabilidade para autorizar a minha ausência em Lisboa, para participar no Congresso, invocando mesmo o interesse e orgulho pela presença da minha pessoa, enquanto responsável pela Secção de Justiça. Este pequeno pormenor é elucidativo sobre o impacto desse Congresso.
E, sendo um depoimento pessoal, sobre esse evento histórico de há 50 anos, considero natural revisitar esse momento do ponto de vista de alguém que dava os primeiros passos na advocacia, cheio de ilusões no que respeita à Justiça, mas firme na convicção da liberdade e independência do advogado num país em que não era fácil ser livre e independente. No entanto, os advogados de então eram manifestamente o espelho dessa luta pela liberdade e independência e a realização do Congresso foi exemplo disso mesmo.
Nessa revisitação do passado recordo sempre uns versos que meu Pai fez para um livro do meu curso (que não chegou a ser elaborado), e que ao longo da minha vida profissional muitas vezes recordo com veneração como a antecâmara da realidade que vivi ao longo destes 50 anos:
Ainda há bem pouco tempo escrevi que o meu Pai não tinha de me pedir desculpa, porque voltaria a percorrer estes 50 anos com a mesma convicção que tinha na altura desse 1.º Congresso. Sabendo o que sei hoje, porém, eu, como muitos outros advogados, não teria a mesma ilusão.
Fazendo agora a revisitação ao Congresso, através do seu programa, das suas conclusões, e, sobretudo, da sua reportagem fotográfica, não posso deixar de manifestar a minha emoção, que, confesso, chegou às lágrimas, ao ver-me tão jovem no meio dos monstros da advocacia portuguesa. E a saudade que me assaltou não é da minha juventude, mas do facto de a maior parte deles já não estar entre nós.
Tenho pena de o dizer, mas hoje ninguém liga a gestos grandes ou pequenos. Mas eu, então com 25 anos de idade e três meses de advocacia, não posso deixar de recordar com emoção e saudade, ser tratado por colega por esses grandes advogados, a maior parte dos quais só conhecia de nome. Isso ficou para o resto da vida, marcou-me de maneira indelével. E este aspecto do relacionamento entre advogados mudou completamente nestes 50 anos, não sendo mais possível o clima que nesse primeiro Congresso Nacional se viveu.
Como testemunho de um episódio marcante, destaco, na sessão das conclusões, a intervenção de Jorge Fagundes, que eu apenas conhecia de nome, e a quem no final felicitei pela sua coragem, nascendo, a partir daí, uma grande amizade que durou até ele nos deixar.
No tema “Extensão da Ordem dos Advogados ao Ultramar”, de que foi relator Vasco da Gama Fernandes, que viria a ser Presidente da Assembleia da República, concluiu-se da “necessidade e da urgência de institucionalizar a profissão da advocacia no Ultramar” e formularam-se recomendações no sentido da organização da advocacia e da Ordem dos Advogados no Ultramar.
Perante as conclusões e recomendações, Jorge Fagundes pediu a palavra para manifestar a sua indignação perante aquilo que considerava uma ingerência no direito à autodeterminação das colónias, causando um impacto na comunicação social, designadamente, nos jornais afectos ao regime, que chegou ao ponto de o apelidarem de traidor. Pouco importa discutir hoje o tema, pois o que ficou foi um exemplo da coragem em afirmar com convicção e independência o politicamente incorrecto e o direito à liberdade de expressão e opinião.
Se me pedem hoje, a 50 anos de distância, uma palavra sobre esse memorável Congresso, direi apenas: saudade!…
Permitam-me, pois, que, face a essa evidência, tenha uma nota pessoal sobre esse momento vivido enquanto um jovem e recentíssimo advogado, que, em Novembro de 1972, era também Aspirante a Oficial Miliciano num Quartel em Tavira, e com escritório aberto naquela cidade. Não posso deixar de ter aqui uma palavra de agradecimento e saudade para com o Comandante, Coronel Melo de Oliveira, que assumiu toda a responsabilidade para autorizar a minha ausência em Lisboa, para participar no Congresso, invocando mesmo o interesse e orgulho pela presença da minha pessoa, enquanto responsável pela Secção de Justiça. Este pequeno pormenor é elucidativo sobre o impacto desse Congresso.
E, sendo um depoimento pessoal, sobre esse evento histórico de há cinquenta anos, considero natural revisitar esse momento do ponto de vista de alguém que dava os primeiros passos na advocacia, cheio de ilusões no que respeita à Justiça, mas firme na convicção da liberdade e independência do advogado num país em que não era fácil ser livre e independente. No entanto, os advogados de então eram manifestamente o espelho dessa luta pela liberdade e independência e a realização do Congresso foi exemplo disso mesmo.
Nessa revisitação do passado recordo sempre uns versos que meu Pai fez para um livro do meu curso (que não chegou a ser elaborado), e que ao longo da minha vida profissional muitas vezes recordo com veneração como a antecâmara da realidade que vivi ao longo destes cinquenta anos:
O senhor doutor Direito
E a dona Legislação
Casaram-se com proveito.
Regimen: a comunhão.
Tiveram filhos a eito.
Que profusa geração!
Cada qual é um conceito,
Chamado p’r um palavrão.
Pois desse fecundo leito
Até nasceu a Adopção,
Logo o Domínio Perfeito,
Usufruto e Servidão.
Entre muitos, sem preceito,
Enfiteuse e Acessão,
Mais a Obra com Defeito,
Est’licídio, Avulsão;
Criados no mesmo peito,
O Compáscuo e o Quinhão.
Com seu jurídico efeito,
Vêm Dolo e Coacção;
Duas filhas de respeito:
A Posse e a Prescrição,
Esta par’cida no jeito
Com a Usucapião;
Um filho são e escorreito:
O Ónus da Colação.
Com o casal mal refeito,
O Esbulho, a Gestão
E, sem qualquer preconceito,
Coisa Fungível (ou não),
O Cabecel e o Feito,
O Laudémio, a Novação
E o fruto mais imperfeito
Da pertinaz gestação,
Que tudo põe contrafeito:
O Prazo da Prestação.
Ai do passivo sujeito
De tamanha obrigação,
Que nem pára satisfeito
No p’ríodo da concepção.
Ou por vício ou por trejeito,
Lá vai codificação…
Assim vivem o Direito
E a sua Legislação.
Aquele quase desfeito,
Mas esta sempre em acção.
Nunca falta alguém atreito
A dar-lhe forma e sanção:
Há sempre um jurista eleito,
Por desgraça da nação.
***
Meti-te neste sarilho,
Tu desculparás, meu filho.
Direito-Legislação
Tem cunho, tem atracção,
Mas quando passar’s à liça
E conhecer’s a Justiça…
Confia na ilusão!