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O Estado de Direito na União Europeia em 2021: alguma luz ao fundo do túnel
Da perspetiva dos Advogados europeus um dos principais desafios da União Europeia será forçosamente o de garantir a salvaguarda do Estado de Direito e a independência e imparcialidade dos tribunais em todos os Estados-Membros da União
Poderia pensar-se que o Estado de Direito é um pressuposto das ordens jurídicas do mundo ocidental, que integra as suas tradições constitucionais comuns e não necessita de elucidação ou defesa. Contudo, nos tempos mais recentes habituámo-nos a observar, com crescente inquietação, notícias de ameaças a este valor fundamental, consagrado no artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE), em particular no que respeita à independência do poder judicial, e a verificar, ainda com maior preocupação, a dificuldade em solucioná-las eficazmente a partir dos instrumentos jurídicos existentes.
É por isso que, ao analisar os desafios que se colocam à União Europeia, neste primeiro semestre de 2021 em que Portugal ocupa a presidência do Conselho, um dos principais, da perspetiva dos Advogados europeus, será forçosamente o de garantir a salvaguarda do Estado de Direito e a independência e imparcialidade dos tribunais em todos os Estados-Membros da União – independência e imparcialidade essas que se afiguram essenciais, não só para a existência de uma tutela jurisdicional efetiva nas ordens jurídicas nacionais, mas também para a confiança mútua entre as autoridades dos Estados-Membros que está na base do mercado interno e do espaço de liberdade, segurança e justiça europeus.
Não sendo o panorama particularmente animador, há em todo o caso vários desenvolvimentos positivos recentes que importa assinalar.
UM NOVO REGIME DE PROTEÇÃO DO ORÇAMENTO DA UNIÃO NO DOMÍNIO DO ESTADO DE DIREITO
O primeiro é a aprovação no final do ano passado do Regulamento 2020/2092, que instituiu um regime de condicionalidade para garantir o respeito pelo princípio do Estado de direito[1], e que permitirá à Comissão Europeia propor ao Conselho, após um procedimento contraditório, tomar medidas contra um Estado-Membro para proteger o orçamento da União, tais como suspender o pagamento de fundos ou a aprovação de programas europeus, quando determine a existência de violações do princípio do Estado de Direito que afetem os interesses financeiros da União. Constituem indícios de tais violações, em particular, situações que ponham em risco a independência do poder judicial ou limitem a disponibilidade e eficácia dos mecanismos processuais nacionais que assegurem a tutela jurisdicional efetiva.
Trata-se também do primeiro instrumento legislativo europeu que enuncia e explicita em detalhe a noção de Estado de Direito e os princípios que a concretizam (em particular os da legalidade, da segurança jurídica, da proibição da arbitrariedade do poder executivo, da tutela jurisdicional efetiva, da separação de poderes e da não discriminação e da igualdade perante a lei), o que, mesmo tendo apenas natureza declarativa, se afigura de grande utilidade para os aplicadores do direito, sobretudo perante as jurisdições nacionais.
O processo legislativo deste diploma revelou-se conturbado, especialmente devido à oposição de dois Estados-Membros (a Hungria e a Polónia), que, como amplamente noticiado, ameaçaram impedir a aprovação de todo o pacote financeiro e orçamental da União para o período 2021-2027 (sujeita a unanimidade) caso o mesmo incluísse o regime de salvaguarda do Estado de Direito (cuja aprovação requer apenas maioria qualificada). Tendo os referidos Estados anunciado que iriam interpor recurso de anulação do novo regulamento no Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 263.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), o Conselho Europeu chegou in extremis a um compromisso, nos termos do qual a Comissão declarou que aguardará pelo acórdão do Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre tal recurso antes de elaborar orientações sobre a aplicação do regulamento, e apenas proporá medidas corretivas ao Conselho após tais orientações serem adotadas[2]. Em todo o caso, uma vez que as probabilidades de sucesso de um eventual recurso aparentam ser reduzidas, e o respetivo processo no Tribunal de Justiça poderá beneficiar de tramitação acelerada, não parece impossível que um acórdão sobre o mérito seja proferido até ao final do corrente ano.
O PRIMEIRO RELATÓRIO SOBRE A SITUAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO NA UNIÃO
Na sequência de outras iniciativas anteriores, em setembro de 2020 a Comissão Europeia publicou o primeiro relatório anual sobre a situação do Estado de Direito na União Europeia, que contém uma avaliação específica e um capítulo dedicado a cada um dos 27 Estados-Membros[3]. Resultado de uma colaboração estreita com os Estados-Membros e com uma rede de pontos de contacto nacionais – que incluiu, entre outros, as redes de magistrados europeias, o Conselho europeu das ordens dos Advogados (CCBE) e algumas ordens nacionais –, o relatório insere-se no mecanismo europeu para o Estado de Direito que a Comissão pretende implementar e analisa a situação de cada Estado-Membro por referência a quatro pilares principais: o sistema judicial, o combate à corrupção, o pluralismo da comunicação social e outras questões institucionais relevantes para o equilíbrio de poderes num sistema democrático.
Os relatórios anuais sobre o Estado de direito, e a avaliação detalhada que neles se faz sobre a situação específica de cada Estado-Membro, constituem uma ferramenta preventiva que pretende identificar as tendências em matéria de Estado de Direito e contribuir para evitar o aparecimento de problemas graves, sendo por isso de louvar, embora não substituam os outros instrumentos de direito da União relevantes neste domínio. O primeiro relatório revela um quadro algo diverso e não isento de preocupação, em que a independência do poder judicial está a ser reforçada em alguns Estados-Membros, mas continua a ser um motivo de apreensão em outros (com particular destaque para a Hungria e a Polónia); a eficácia das investigações e da ação penal em matéria de corrupção continuam a constituir um desafio em várias ordens jurídicas (Portugal merece reparo por não ter ainda dotado de meios adequados as autoridades responsáveis pela recente estratégia nacional contra a corrupção, que não se encontram plenamente operacionais); e em alguns Estados colocam-se preocupações sérias quanto ao exercício de pressão política sobre os meios de comunicação social e ameaças a jornalistas. O relatório de 2021 encontra-se já em preparação, esperando-se que seja publicado no próximo mês de julho.
RETOMAR OS PROCEDIMENTOS DO ARTIGO 7.º TUE
É sabido que se encontram pendentes, desde 2017 e 2018, respetivamente, procedimentos no Conselho da UE contra a Hungria e a Polónia, iniciados ao abrigo do artigo 7.º TUE, com fundamento em indícios sérios de violação dos princípios do Estado de direito. O “procedimento do artigo 7.º” é um mecanismo de controlo de natureza política nos termos do qual o Conselho pode decidir a suspensão de alguns dos direitos de um Estados-Membro decorrentes dos Tratados, incluindo o direito de voto do respetivo representante no Conselho. No entanto, o processo é complexo e comporta várias fases, dependendo a aplicação de qualquer medida sancionatória de uma decisão unânime dos Estados-Membros (excluindo o Estado objeto do processo). Uma vez que tanto a Hungria como a Polónia anunciaram imediatamente que vetariam qualquer decisão do Conselho contra o outro Estado-Membro, ambos os processos encontram-se há muito praticamente parados num impasse político.
É de saudar, neste contexto, que, na apresentação das prioridades da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, o Primeiro-ministro António Costa tenha afirmado recentemente perante o Parlamento Europeu que considera importante “não deixar parado os processos abertos no âmbito do artigo 7.º” e que é “absolutamente fundamental” fazer avançar os dois processos pendentes contra a Hungria e a Polónia[4]. Sendo provável o respetivo desfecho, devido aos vetos já anunciados, é de todo o modo importante que o Conselho retome ambos os processos e ao menos considere verificada a existência de um risco manifesto de violação grave dos princípios do Estado de Direito (decisão que depende apenas de maioria qualificada), para não retirar toda a credibilidade ao mecanismo e manter alguma pressão política sobre os Estados em causa.
O PAPEL ESSENCIAL DOS TRIBUNAIS EUROPEUS
Os tribunais da União têm tido um papel decisivo na resposta às preocupações suscitadas pelas medidas dos Estados-Membros relativamente ao Estado de direito. O Tribunal de Justiça tem vindo a consolidar um importante corpo de jurisprudência neste domínio, iniciado em 2018 pelo célebre acórdão Associação Sindical dos Juízes Portugueses[5] (na sequência de um pedido de reenvio formulado, noutro contexto, pelo Supremo Tribunal Administrativo), que é absolutamente clara no sentido de que a independência dos juízes dos Estados-Membros reveste uma importância fundamental para a ordem jurídica da União. Tal importância decorre antes de mais, do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º TUE, bem como do artigo 19.°, n.º1 §2 TUE, que concretiza este valor e atribui a tarefa de assegurar a fiscalização jurisdicional nesta ordem também aos órgãos jurisdicionais nacionais, constituindo ainda condição necessária para garantir aos particulares, no âmbito de aplicação do direito da União, o direito fundamental a um tribunal independente e imparcial previsto no artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[6].
Assim, as limitações inerentes ao procedimento do artigo 7.º TUE apenas foram ultrapassadas quando a Comissão Europeia intentou em 2018 duas ações por incumprimento contra a Polónia, nos termos do artigo 258.º do TFUE (incidindo sobre um novo regime de aposentação dos juízes do Supremo Tribunal, que implicavam a cessação imediata do mandato de um terço dos juízes desse tribunal, e sobre um regime equivalente para os tribunais comuns), que deram origem aos primeiros acórdãos do Tribunal de Justiça verificando o incumprimento de um Estado-Membro da União por violação do princípio do Estado de direito[7].
Entretanto, a Comissão intentou em 2019 uma terceira ação por incumprimento contra a Polónia (relativa ao novo regime disciplinar dos juízes, que entre outros admite que o conteúdo de decisões judiciais possa ser qualificado de infração disciplinar), pendente no Tribunal de Justiça[8], e iniciou em 2020 um quarto processo por incumprimento, relativo às novas competências da secção disciplinar do Supremo Tribunal polaco, ainda na fase administrativa[9].
Muito recentemente o Tribunal de Justiça proferiu um importante acórdão, na sequência de um reenvio prejudicial do Supremo Tribunal Administrativo da Polónia, relativo ao processo de nomeação dos juízes do Supremo Tribunal daquele Estado-Membro[10]. Neste acórdão, o Tribunal de Justiça concluiu que as sucessivas alterações da legislação aplicável ao Conselho Nacional da Magistratura polaco, que vieram suprimir a fiscalização judicial das decisões deste conselho sobre os candidatos a juiz do Supremo Tribunal (aparentemente para evitar, entre outros, que o tribunal de recurso submetesse questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça), são suscetíveis de violar o artigo 19.º, n.º1 e o artigo 267.º TFUE, podendo pôr em causa a independência e imparcialidade dos juízes do Supremo Tribunal, em particular face a influências diretas ou indiretas dos poderes legislativos e executivo. O Tribunal declarou igualmente que, em caso de violação comprovada, o princípio do primado do direito da União obriga o órgão jurisdicional nacional a não aplicar as medidas legislativas em causa.
Encontram-se ainda pendentes no Tribunal de Justiça mais de uma dezena de processos prejudiciais, iniciados por pedidos de tribunais polacos, relativos às medidas da reforma judicial na Polónia[11], pelo que se antecipam desenvolvimentos jurisprudenciais importantes ao longo do ano de 2021.
CONCLUSÃO
Não obstante a importância da jurisprudência dos tribunais da União para a salvaguarda do princípio do Estado de direito, verifica-se que, isoladamente, os processos judiciais por incumprimento não permitem dar resposta eficaz às medidas legislativas de um Estado-Membro que possam ser atentatórias deste princípio – como demonstra bem o caso da Polónia, iniciado pela Comissão há mais de cinco anos[12] e que em larga medida permanece ainda por resolver. Tem por isso toda a importância reforçar a aplicação dos restantes instrumentos do direito da União acima referidos, e em particular a monitorização associada aos relatórios anuais sobre o Estado de direito, na expectativa de que, coordenada e gradualmente, os mesmos levem os governos dos Estados-Membros em causa a alterar a sua política (ou os respetivos eleitores a obrigá-los a isso).
O respeito pelo Estado de Direito implica um esforço de vigilância quotidiana, em todos os Estados–Membros, incluindo Portugal. Suscitam por isso as maiores reservas declarações recentes de responsáveis políticos nacionais, a propósito da eleição do Presidente do Tribunal Constitucional (o qual nos termos da lei é eleito pelos juízes do Tribunal de entre si, em voto secreto e sem discussão ou debate prévios), no sentido de que haveria um “acordo de cavalheiros” relativamente ao nome do Presidente, que seria “acertado” entre os dois maiores partidos políticos nacionais[13], o que, a ocorrer, constituiria uma pressão inadmissível sobre os juízes do Tribunal Constitucional, que após a sua eleição ou cooptação são independentes e imparciais, em particular dos órgãos do poder político.
A terminar, importa não esquecer que o princípio do Estado de direito, nas vertentes da independência do poder judicial, do acesso à justiça e da proibição de decisões arbitrárias, pressupõe e exige necessariamente Advogados independentes. A independência dos Advogados e das respetivas ordens está estreitamente associada à independência dos outros atores judiciários e é essencial para garantir a correta administração da justiça. Neste contexto espera-se que o próximo relatório anual sobre o Estado de Direito aborde adequadamente a questão da independência dos Advogados (largamente omissa no Relatório de 2020)[14], sobretudo quando nos últimos anos têm vindo a lume, em vários Estados-Membros, medidas tomadas contra Advogados, pela prática de atos típicos da profissão, que suscitam preocupações sérias da perspetiva da independência da profissão e do Estado de direito.
[1] Regulamento (UE, Euratom) 2020/2092 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2020, relativo a um regime geral de condicionalidade para a proteção do orçamento da União, JOUE L 433, de 22.12.2020, p.1.
[2] Cf. as Conclusões do Conselho Europeu de 10-11 de dezembro de 2020 (EUCO 12/20), n.ºs 2 e 3.
[3] Cf. as Comunicações da Comissão Reforçar o Estado de Direito na União – Plano de Ação, de 17.7.2019, COM(2019)343 final, e Relatório de 2020 sobre o Estado de Direito – Situação na União Europeia, de 30.9.2020, COM(2020)580 final (Relatório de 2020).
[4] Cf. TSF, ″Portugal orgulha-se de ser exemplo na proteção do Estado de direito″, 20.1.2021.
[5] Acórdão de 25 de fevereiro de 2018, proc. C-64/16.
[6] Cf. acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2020, Land Hessen, proc. C-272/19, n.º 45, que resume a jurisprudência anterior, e as conclusões do advogado-geral Hogan de 17 dezembro de 2020, proc. C-896/19, Repubblika, n.ºs 37 e ss.
[7] Cf. acórdãos de 24 de junho de 2019, Comissão c. Polónia, C-619/18, e de 5 de novembro de 2019, Comissão c. Polónia, C-192/18.
[8] Proc. C-791/19.
[9] Cf. comunicados de imprensa de 29.4.2020 (IP/20/772) e 27.1.2021 (IP/21/224).
[10] Acórdão de 2 de março de 2021, A.B. e o. (nomeação dos juízes do Supremo Tribunal – recurso), proc. C-824/18.
[11] Cf. Relatório de 2020 sobre o Estado de direito – Capítulo relativo à Polónia, SWD(2020)320 final, p. 3.
[12] Cf. a Recomendação (UE) 2016/1374 da Comissão, de 27 de julho de 2016, relativa ao Estado de Direito na Polónia, JO L 217 de 12.8.2016, p. 53.
[13] Cf. Observador, “PS incomodado com escolha de Caupers e acusa PSD de furar “acordo de cavalheiros””, 18.2.2021.
[14] Cf. neste sentido a declaração do CBE sobre o Relatório de 2020 sobre o Estado de direito, de 17.12.2020.