DISCUTIR | (Sobre)vivendo em Pandemia…
O crescente recurso às plataformas eletrónicas e ao comércio eletrónico durante a pandemia
Com a pandemia o recurso a plataformas eletrónicas cresceu exponencialmente sendo múltiplos os problemas jurídicos colocados pelo recurso a tais plataformas e ao comércio eletrónico
A pandemia tem-nos obrigado ao recolhimento domiciliário e a restringir o contacto social físico. Para muitos de nós, a interação social através de meios eletrónicos já desempenhava anteriormente um papel importante não só para a aquisição de bens e serviços, mas também para o contacto com os nossos familiares, amigos e colegas. Mas, com a pandemia, cresceu o recurso a plataformas eletrónicas como a Amazon, o Google ou o Facebook. O número de utilizadores das plataformas das grandes cadeias de supermercados e de fornecimento de equipamentos eletrónicos e eletrodomésticos, bem como de outras plataformas nacionais, também cresceu exponencialmente.
A contratação eletrónica, realizada principalmente através da internet, mas mais em geral através de meios eletrónicos, incluindo redes digitais fechadas, também se expandiu nas relações interempresariais e, mais em geral, nas relações entre pessoas que atuam no exercício de uma atividade profissional independente.
A contratação eletrónica é prática e, normalmente, rápida; quando realizada através de sítios da internet que permitem a contratação em linha processa-se, na prática, instantaneamente, sem prejuízo das formalidades que podem ser exigidas pela legislação aplicável. As plataformas eletrónicas permitem frequentemente a escolha dentro de um universo de produtos que anteriormente só estavam disponíveis em grandes estabelecimentos, a pluralidade de meios eletrónicos de pagamento e o acesso a serviços de entrega ao domicílio. Em alguns casos, os próprios bens e serviços adquiridos podem ser fornecidos em linha (comércio eletrónico direto), dispensando a sua entrega física (comércio eletrónico indireto).
A contratação eletrónica e as plataformas eletrónicas também implicam dificuldades e riscos específicos.
Desde logo, as conexões espaciais (localização dos sujeitos e dos bens corpóreos envolvidos) das relações estabelecidas por meios eletrónicos esbatem-se, não são cognoscíveis ou são simplesmente ignoradas. A identidade das pessoas singulares e coletivas intervenientes pode ser dificilmente cognoscível ou mais facilmente falseada. Os gestores das plataformas recolhem dados pessoais dos utilizadores cujo tratamento encerra riscos, designadamente para a sua privacidade. Enfim, a decisão de adquirir um bem ou serviço pode ser menos refletida ou ocorrerem erros sobre as características do produto.
Por outro lado, a internet é uma rede transnacional. Por esse facto, as relações que se estabelecem através da internet não são necessariamente transnacionais, mas são-no frequentemente em virtude da localização dos sujeitos ou dos bens envolvidos em países diferentes ou de outros contactos relevantes da relação com a esfera social de uma pluralidade de Estados.
Os problemas jurídicos colocados pelo recurso às plataformas eletrónicas e ao comércio eletrónico, que nem sempre é feito através de plataformas eletrónicas, são múltiplos. É o caso, no Direito privado, entre outros, de problemas de Direito dos Contratos, do Direito da Personalidade, incluindo a proteção de dados pessoais e de responsabilidade extracontratual.
Quando se trata de relações transnacionais, acrescem problemas específicos de Direito Internacional Privado. Não se pode partir do princípio que uma relação transnacional está submetida à jurisdição dos tribunais nacionais e ao Direito material vigente na ordem jurídica portuguesa. É necessário determinar a ou as jurisdições competentes em caso de litígio e o Direito nacional, europeu, internacional ou transnacional aplicável. Podem ainda surgir problemas de reconhecimento de decisões proferidas por órgãos de outros Estados ou supraestaduais, ou de decisões arbitrais “estrangeiras”, designadamente.
Para a solução destes problemas é, antes do mais, necessário entender os conceitos relevantes.
Já me referi ao conceito de contratação eletrónica.
Por comércio eletrónico deve igualmente entender-se as transações realizadas por meios eletrónicos.
A legislação europeia, bem como a legislação nacional que transpõe diretivas europeias, também utiliza o conceito de serviços da sociedade da informação. Para efeitos da Diretiva sobre Comércio Eletrónico (Dir. 2000/31/CE), o conceito de “serviços da sociedade da informação” abrange não só a prestação de serviços em linha, mas também a venda, em linha, de mercadorias (18.º Considerando) [1]. A definição mais recente, para qual remetem outros instrumentos, consta da Diretiva Relativa a um Procedimento de Informação no Domínio das Regulamentações Técnicas e das Regras Relativas aos Serviços da Sociedade da Informação (codificação) (Dir. (UE) 2015/1535). Nos termos do art. 1.º/1/b, “serviço” significa qualquer serviço da sociedade da informação, isto é, qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via eletrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços.
A Diretiva sobre Comércio Eletrónico, transposta pelo DL n.º 7/2004, de 7/1, para além de visar garantir a livre circulação dos serviços da sociedade da informação entre Estados-Membros, estabelece certas regras de Direito Privado sobre as comunicações comerciais, os contratos eletrónicos e a responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços, que, designadamente, excluem, em princípio, um dever geral de vigilância dos intermediários na internet sobre as informações que estes transmitam ou armazenem.
Por seu turno, a definição mais recente de serviços intermediários consta da Proposta de um Ato de Serviços Digitais (Digital Services Act) [2]. Nos termos do art. 2.º/f, o serviço intermediário pode consistir na transmissão numa rede de comunicações de informação fornecida pelo destinatário do serviço ou o fornecimento de acesso a uma rede de comunicações; na transmissão numa rede de comunicação de informação fornecida pelo destinatário do serviço envolvendo a armazenagem automática, intermédia e temporária dessa informação para o único fim de tornar mais eficiente a transmissão subsequente dessa informação para outros destinatários a seu pedido (caching); e a armazenagem de informação fornecida por, e a pedido, de um destinatário do serviço (hosting).
Por último, o conceito de plataforma eletrónica não é unívoco e, enquanto conceito jurídico, não é comum à generalidade dos sistemas jurídicos. Numa aceção ampla, pode dizer-se que as plataformas eletrónicas são serviços que utilizam infraestruturas digitais, designadamente sítios da internet e aplicações ligadas à internet, para permitir a interação social. Um conceito jurídico mais restrito encontra-se no art. 2.º/h da Proposta de um Ato de Serviços Digitais que define “plataforma em linha” como um fornecedor de serviço de hosting que a pedido do destinatário do serviço armazena e divulga informação ao público e que não é puramente auxiliar de outro serviço.
A preocupação de proteger os utilizadores de plataformas eletrónicas (em sentido amplo) contribuiu para a adoção de diversos instrumentos europeus. Uma parte importante destes instrumentos diz respeito à aquisição de bens e serviços por consumidores através da internet ou em modalidades de contratação que a abrangem. Mais amplamente, a proteção de dados pessoais é objeto de uma extensa regulação no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Reg. (UE) 2016/679).
Saliento aqui a Diretiva Relativa aos Direitos dos Consumidores (Dir. (UE) 2011/83), transposta pelo DL n.º 24/2014, de 14/2, e alterada pela Dir. (UE) 2015/2302, transposta neste particular, pelo DL n.º 78/2018, de 15/10, que estabelece, designadamente, um regime específico para os contratos à distância, incluindo deveres de informação pré-contratual, requisitos de forma e formalidades, Direito de revogação pelo consumidor dentro de determinado prazo e regras sobre a execução.
Mais recentemente, merecem ainda destaque a Diretiva Sobre Certos Aspetos Relativos aos Contratos de Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais (Dir. (UE) 2019/770) e o Reg. (EU) 2019/1150 Relativo à Promoção da Equidade e da Transparência para os Utilizadores Profissionais de Serviços de Intermediação em Linha.
Também no domínio da resolução extrajudicial em linha de litígios emergentes de contratos de consumo celebrados através da internet, cabe mencionar o Reg. (UE) 524/2013 sobre a Resolução de Litígios de Consumo em Linha que visou a criação de uma plataforma de resolução extrajudicial de litígios em linha relativos às obrigações contratuais resultantes de contratos de venda ou de serviços em linha entre um consumidor residente na União e um comerciante estabelecido na União através da intervenção de uma entidade de resolução alternativa de litígios inserida numa lista nos termos do artigo 20.º/2, da Diretiva 2013/11/UE (transposta pela L n.º 144/2015, de 8/9).
Nas relações transnacionais, deve ser dada atenção às fontes internacionais, europeias e internas do Direito Internacional Privado e do Direito Comercial Internacional.
Em especial, no que toca à determinação da jurisdição competente na falta de convenção de arbitragem, deve ter-se em conta o Reg. (UE) 1215/2012, Relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (Bruxelas I bis) e o regime interno que consta do Código de Processo Civil. E, no que toca à determinação do Direito aplicável, o Reg. (CE) n.º 593/2008, Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (Roma I), o Reg. (CE) n.º 864/2007, Relativo à Lei Aplicável às Obrigações Extracontratuais (Roma II) e, ainda, no que toca aos Direiros de personalidade, ou a certos Direiros de personalidade, aos arts. 27.º e 45.º do Código Civil [3].
Nas relações transnacionais entre empresas e/ou profissionais independentes, a Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias, a que recentemente Portugal aderiu, também pode desempenhar um papel relevante.
Quanto ficou exposto dá testemunho de uma parte da extensa regulação das plataformas eletrónicas e do comércio eletrónico a nível da União Europeia, que a já referida Proposta de um Ato dos Serviços Digitais, bem como a proposta de um Ato dos Mercados Digitais (Digital Markets Act) [4], apresentadas pela Comissão da UE no ano passado, procuram ampliar.
A regulação é em muitos aspetos necessária, mas deve ter-se presente que a internet é uma realidade global, que idealmente deveria ser regulada a nível internacional e que deve muito do seu sucesso ao dinamismo da sociedade civil.
Por isso, os Estados e as organizações regionais devem envidar esforços no sentido da unificação internacional do Direito aplicável, respeitar os limites que o Direito Internacional Público coloca ao exercício das competências legislativa e jurisdicional e evitar cúmulos de normas e conflitos de deveres que onerem os utilizadores e fornecedores de serviços da rede.