NOVAS ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA
Foi aprovado em Conselho de Ministros um diploma que altera o Código dos Contratos Públicos (CC) e a Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, sobre as medidas especiais de contratação pública. Em geral, trata-se de uma intervenção legislativa com um âmbito circunscrito, não idealizada para promover uma reforma da regulamentação existente, e que, em larga medida, tem o propósito de esclarecer o sentido de alguns preceitos legais ou, noutros casos, de introduzir pequenas correções para afeiçoar as soluções da lei nacional às exigências das diretivas europeias da contratação pública. Não obstante ser esse o seu perfil geral, em pontos localizados, a nova legislação introduz alterações de grande relevo e impacto, que, pelo menos num caso, chega até a atingir o essencial de uma importante opção de fundo da versão originária do CCP (2008).
ALTERAÇÕES DO REGIME DAS MEDIDAS ESPECIAIS DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA
O regime das medidas especiais de contratação pública, aprovado pela Lei n.º 30/2021, consistiu sobretudo em conferir às entidades adjudicantes a faculdade de adotarem, para contratos com determinados objetos e em certos setores, procedimentos de contratação baseados em convite, sem anúncio no Diário de República: em tais procedimentos podem apenas participar os agentes económicos para o efeito convidados. O novo diploma alarga o prazo de vigência desse regime especial: inicialmente definido para vigorar até ao fim do ano de 2022 em relação aos contratos a celebrar em certos setores (habitação, tecnologias de informação e conhecimento, setor da saúde e apoio social), aquele regime vê o seu prazo de aplicação estendido até ao fim de 2026. Além disso, o diploma esclarece que a aplicação do regime das medidas especiais quanto a procedimentos pré-contratuais relativos à execução do PRR não carece de despacho ministerial.
A nova legislação introduz alterações de grande relevo e impacto, (…) chega até a atingir o essencial de uma importante opção de fundo do CCP
ALTERAÇÕES AO CCP
Embora pontuais, são mais minuciosas as alterações que o diploma introduz no CCP.
Assim, para nos cingirmos às mais relevantes, temos, em primeiro lugar, uma alteração relativa aos requisitos de adoção do procedimento de ajuste direto na sequência de procedimentos de concurso desertos (sem candidaturas ou sem propostas apresentadas) ou infrutíferos (em que todas as candidaturas ou propostas foram excluídas); no caso de procedimentos de concurso infrutíferos, define-se agora um regime dual quanto à possibilidade de adoção de ajuste direto, que varia em função do valor contrato a celebrar ser superior ou inferior ao valor dos limiares de aplicação das diretivas europeias.
O regime dos designados contratos reservados no domínio da contratação autárquica e local é retocado, no sentido de se definir que a possibilidade de reservar o acesso aos procedimentos nesse âmbito depende não só de os contratos terem um valor inferior aos limiares de aplicação das diretivas europeias, mas ainda de não revelarem um “interesse transfronteiriço certo”: a legislação acolhe assim um conceito da jurisprudência do TJUE, mobilizado para enquadrar os termos da aplicação de princípios do direito da União Europeia a decisões nacionais em matéria de formação de contratos públicos.
Uma alteração relevante, esclarecedora e em sentido correto refere-se à nova redação do artigo 72.º, n.º 3, do CCP, sobre o mecanismo procedimental de regularização de propostas e candidaturas. Com o propósito de melhorar e até depurar a versão anterior desse preceito, introduzida em 2017, e que tanta “doutrina” mobilizou, o legislador adota agora uma formulação mais clara, fazendo a leitura que sempre se me afigurou correta sobre os termos e o âmbito da possibilidade de regularização de propostas e candidaturas. Na nova versão, define-se que o “júri deve solicitar aos candidatos e concorrentes que, no prazo máximo de cinco dias, procedam ao suprimento de irregularidades formais das suas candidaturas e propostas que careçam de ser supridas, desde que tal não seja suscetível de modificar o respetivo conteúdo e não desrespeite os princípios da igualdade de tratamento e da concorrência”; a seguir, nas três novas alíneas do preceito, identificam-se situações típicas exemplificativas de irregularidades formais que carecem de ser cumpridas. Trata-se de uma alteração bem-vinda, que, como se disse, se filia na leitura correta sobre o instituto da regularização de propostas e candidaturas, tornando claros três elementos essenciais: (i) abrangidas são as propostas e candidaturas que padeçam de irregularidades formais; (ii) as irregularidades formais deverão carecer de suprimento, o que significa que só se abrangem as irregularidades que, nos termos previstos na lei ou nas peças do procedimento, conduzam à exclusão das propostas ou candidaturas; (iii) o suprimento não pode conduzir a uma alteração do conteúdo da proposta e não pode desrespeitar os princípios da igualdade de tratamento e da concorrência. Uma outra alteração com esta relacionada consiste em tipificar como contraordenação grave o facto de candidato ou concorrente não proceder ao suprimento no prazo definido pelo júri.
Pelo impacto na prática, merece destaque a alteração do artigo 370.º, que acerta a letra da lei portuguesa com a das diretivas no que se refere aos requisitos da possibilidade de imposição de trabalhos complementares, ao indicar que razões económicas – e não apenas técnicas – podem constituir fundamento para não mudar de cocontratante.
Como expressão de mais uma abertura legal à utilização estratégica da contratação pública (utilização da contratação pública para prossecução de interesses públicos gerais), merecem registo duas novas normas: i) a que autoriza as entidades adjudicantes a exigir que as propostas dos concorrentes sejam constituídas por um documento demonstrativo da estrutura de custos do trabalho necessário à execução do contrato a celebrar; ii) a que exige que os cadernos de encargos de procedimentos de formação de concessões de obras e de serviços e de aquisição de serviços incluam uma cláusula a determinar a obrigação de o cocontratante afetar à execução de contratos de duração superior a um ano trabalhadores em regime de contrato de trabalho sem termo.
Por fim, uma nota para a alteração que inverte o sentido de uma opção de fundo do CCP: em pauta está o aditamento de um artigo, que autoriza as entidades adjudicantes a recorrerem, sem limitações expressas, à empreitada de conceção-construção (contrato que inclui a elaboração do projeto e a realização da obra). Recorde-se que, desde 2008, o CCP só autorizava a conceção-construção em casos excecionais devidamente fundamentados (de complexidade técnica do processo construtivo ou em que o cocontratante tivesse de assumir obrigações de resultado relativas à utilização da obra a realizar). Ainda sobre esta alteração, observe-se que, pelo menos numa primeira leitura, não se compreende o sentido da subsistência da regra originária, que autoriza a conceção-construção apenas em casos excecionais e que, tudo parece indicar, seria consumida pela regra que autoriza a conceção-construção em geral. A subsistência da regra originária conduzirá à solução, algo confusa, de coexistência de dois regimes de formação de contratos de empreitada de conceção-construção.