O conceito de serviços dos ecossistemas tem assumido uma importância crescente nos domínios científico e político, apresentando um elevado potencial para a realização de fins jurídicos. Na legislação ambiental da União Europeia, o dever de ter em consideração os serviços dos ecossistemas nas decisões é uma obrigação transversal. São mencionados, por exemplo, no contexto da luta contra espécies exóticas invasoras[2], na promoção de fontes de energia renováveis[4], no ordenamento do espaço marinho[1], na responsabilidade ambiental[5] e no programa LIFE[6]. Para além da legislação ambiental, também na política agrícola[7], na política de coesão[8] e na cooperação internacional[9] os serviços dos ecossistemas devem ser tidos em consideração. Na União Europeia, a jurisprudência está igualmente a ser influenciada pelo novo conceito. Já em 2014 o Tribunal de Justiça Europeu abordou a questão dos serviços dos ecossistemas no julgamento sobre a política alemã de recursos hídricos[10].
A utilização do conceito como base para a definição de uma política de transformação do espaço rural em Portugal foi explorada no contexto de um projeto desenvolvido para o Ministério do Ambiente e Transição Energética entre 2018 e 2019 por uma equipa de especialistas que integrou os autores deste artigo.
Em vastas áreas rurais do território português têm vindo a acentuar-se um conjunto de problemas de ordem económica, social e ambiental que tornam evidente a insustentabilidade da trajetória de desenvolvimento seguida nas últimas décadas. Nessas áreas, uma economia de baixa rentabilidade e pouco resiliente está associada ao envelhecimento e redução da população residente, ao aumento da incidência e severidade dos incêndios e a problemas ambientais como a expansão de espécies exóticas invasoras, a perda de solo, a redução das áreas florestadas com espécies autóctones ou a perda de biodiversidade.
As baixas produtividade e rentabilidade económica de muitas áreas florestais e agroflorestais têm como consequência que os proprietários desses espaços não conseguem obter um rendimento suficiente para garantir uma adequada gestão das operações florestais, o que por sua vez contribui para a baixa rentabilidade económica. Trata-se de um círculo vicioso.
O conceito de serviços dos ecossistemas, enquanto contributos dos ecossistemas para o bem-estar humano, é fundamental para a resolução dos problemas enunciados.
Os serviços dos ecossistemas compreendem os serviços de aprovisionamento, que dizem respeito aos produtos extraídos dos ecossistemas (e.g. produtos lenhosos e não lenhosos das florestas), os serviços de regulação e manutenção, que se referem aos benefícios associados ao controlo dos processos naturais (e.g. controlo de erosão, regulação hidrológica) e os serviços culturais, que se relacionam com os benefícios não materiais dos ecossistemas (e.g. recreio, identidade cultural)[11].
Os espaços florestais e agroflorestais podem fornecer, para além dos produtos lenhosos e não-lenhosos transacionados nos mercados, muitos outros contributos para o bem-estar da sociedade, relevantes numa perspetiva de curto, médio e longo prazos (e.g. controlo da erosão, regulação hidrológica, conservação da biodiversidade, redução da suscetibilidade ao fogo, qualidade da paisagem, oportunidades de recreio e lazer, identidade cultural).
Porém, os contributos dos espaços (agro-)florestais para a provisão dos serviços de regulação e manutenção e serviços culturais dos ecossistemas não são valorizados pelos mercados, ou são valorizados apenas de uma forma parcial e claramente insuficiente para promover a sua provisão. É assim requerida a adoção de políticas públicas de natureza ambiental que alinhem os interesses da sociedade e das gerações futuras com os dos proprietários e gestores da terra. Estas políticas devem promover uma maior justiça interterritorial e intergeracional, garantindo a devida valorização da propriedade rural e a promoção da sua gestão sustentável, contribuindo para evitar problemas graves que implicam elevados custos económicos, sociais e ambientais, prevenindo o abandono rural, a desertificação e os fogos em áreas rurais.
Neste contexto, começou a ser desenvolvida recentemente em Portugal uma política orientada para a provisão e remuneração de serviços dos ecossistemas em espaços rurais. Esta política visa promover uma alteração estrutural nos modelos de ocupação e gestão dos espaços florestais e agroflorestais pelo reconhecimento do valor e incentivo à provisão de serviços dos ecossistemas, que não são devidamente valorizados pelos mercados mas que contribuem de uma forma inquestionável para o bem-estar das gerações presente e futuras, através de um conjunto de benefícios que se estendem espacialmente muito para além das fronteiras do território que os produzem (spillover benefits, uma forma de externalidade ambiental espacial positiva).
Uma política que pretende promover o alinhamento de interesses entre quem suporta os custos de provisão de serviços dos ecossistemas (de gestão, de oportunidade) e quem captura os seus benefícios, deve traduzir-se na celebração de contratos de gestão (agro-)florestal de longa duração com proprietários e gestores da terra. Pretende-se que a afetação dos terrenos a uma ocupação que potencie a provisão de serviços dos ecossistemas, e nas condições de gestão definidas, se mantenha durante um período temporal longo, de modo a garantir os objetivos ambientais e a criar a estabilidade necessária para alavancar uma nova dinâmica socioeconómica e ambiental nos espaços rurais. A geração desta dinâmica é fundamental para criar condições de sustentabilidade que permitam reduzir, a prazo, as necessidades de apoios financeiros futuros.
A necessidade de promover a celebração de contratos de longa duração (pelo menos 20 anos), implica que os direitos e obrigações decorrentes dos contratos não devem incidir apenas sobre os proprietários atuais dos terrenos, devendo estender-se para os sucessores ou adquirentes a quem venha a ser transmitida a propriedade ou outros direitos, sejam reais ou obrigacionais, inter vivos ou mortis causa. Por essa razão, os contratos a celebrar com os proprietários deverão ter efeitos reais, ou seja, efeitos erga omnes e não apenas inter partes, vinculando assim as partes e também terceiros, externos ao contrato. O que significa que, se durante o período de vigência de cada contrato, o proprietário ou os seus sucessores alienarem o terreno ou transmitirem contratualmente as responsabilidades de gestão, os adquirentes e contratantes estarão vinculados à mesma obrigação de manutenção e gestão em benefício da provisão de serviços dos ecossistemas. E têm facilmente conhecimento dela porque sendo constituído um direito real este fica sujeito a registo junto da conservatória do registo predial.
Os gestores florestais que pretendam participar neste mecanismo, em articulação com os proprietários de prédios rústicos, deverão candidatar um Projeto Florestal para a Provisão e Remuneração de Serviços dos Ecossistemas. Os projetos florestais a apresentar deverão incluir uma fase inicial de investimento, com operações florestais que pretendem garantir a ocupação definida, e uma fase de, pelo menos, 20 anos de operações de manutenção e gestão do espaço de modo a assegurar a pretendida provisão de serviços dos ecossistemas.
Prevêem-se quatro componentes de pagamento aditivas com objetivos diferenciados, o que permite ter a flexibilidade necessária para ajustar o instrumento às situações concretas das intervenções em diversos tipos de sistemas florestais:
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- um pagamento correspondente ao custo de investimento inicial das operações florestais necessárias para colocar as propriedades no estado de ocupação mencionado no contrato;
- um pagamento anual referente aos custos de manutenção e gestão nas condições definidas, durante todo o período de duração do contrato;
- uma compensação por eventuais custos de oportunidade não evitáveis, que resultem de perdas de rendimento potencial (lucros cessantes) pela alteração a realizar na ocupação e gestão do solo (e.g. reconversão de eucaliptais em pastagens ou em povoamento misto de carvalhos e castanheiros);
- um pagamento referente à remuneração dos serviços dos ecossistemas potencialmente prestados durante o período do contrato[12]. Este pagamento é um elemento diferenciador da política preconizada em relação às medidas agro e silvo-ambientais constantes da Política de Desenvolvimento Rural Europeia. De facto, não se fundamenta na compensação de custos financeiros ou económicos incorridos pelos proprietários de prédios rústicos, mas antes no reconhecimento da atribuição de um valor aos serviços dos ecossistemas que as suas propriedades fornecem. O valor do pagamento deve ser calculado de forma a ser incentivador da adesão dos proprietários e atender à relevância dos serviços dos ecossistemas fornecidos, mas remunerando apenas na justa medida em que estes não tenham o seu valor reconhecido nos mercados e atendendo a outros benefícios que os proprietários possam vir a retirar da intervenção financiada.
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Cada Projeto Florestal para a Provisão e Remuneração de Serviços de Ecossistemas deve abranger uma área mínima continua pré-definida. Por este motivo, é fundamental promover uma política de cooperação entre os proprietários/gestores de prédios rústicos adjacentes, ou seja, uma gestão agrupada, sobretudo nas áreas onde a dimensão da propriedade rural é mais reduzida.A aplicação do novo instrumento para a remuneração de serviços dos ecossistemas em espaços florestais e agroflorestais foi testada numa primeira fase em duas áreas piloto, que incluíram duas áreas protegidas: Área de Paisagem Protegida da Serra do Açor e envolvente, e Parque Natural do Tejo Internacional, sendo o financiamento assegurado pelo Fundo Ambiental. Esta fase, designada como 1ª Fase do Programa de Remuneração de Serviços dos Ecossistemas em Espaços Rurais, foi aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 121/2019, de 30 de julho, e concretizou-se através do Aviso n.º 13655/2019 do Fundo Ambiental do Ministério do Ambiente e Transição Energética, publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 167, de 2 de setembro de 2019.
A publicação posterior de diversa legislação veio enquadrar a aplicação da remuneração de serviços dos ecossistemas a outros territórios. A revisão do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) publicada pela Lei n.º 99/2019, de 5 de setembro, identifica a vulnerabilidade dos territórios de floresta e o reconhecimento e valorização do seu capital natural como ativos estratégicos para o desenvolvimento das áreas rurais. Por sua vez, o Programa de Transformação da Paisagem (PTP), aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 49/2020, de 24 de junho), e o regime jurídico da reconversão da paisagem (RJRP), aprovado pelo Decreto-lei n.º 28-A/2020, de 26 de junho, estabelecem um conjunto de medidas programáticas e um quadro de instrumentos jurídicos para definir, planear, programar e gerir os territórios florestais vulneráveis, atendendo à sua organização espacial, que viriam posteriormente, a ser delimitados e publicados pela Portaria n.º 301/2020, de 24 de dezembro.
Os PRGP – Programas de Reordenamento e Gestão da Paisagem constituem uma das medidas programáticas de intervenção previstas no PTP e no RJRP e visam “promover o desenho da paisagem como referencial de uma nova economia dos territórios rurais, que promova uma floresta multifuncional, biodiversa e resiliente, mais rentável, com maior capacidade de sequestro de carbono e capaz de produzir melhores serviços a partir dos ecossistemas”. Os territórios potenciais para delimitação das áreas a sujeitar a estes programas encontram-se definidos no Anexo I da RCM n.º 49/2020, de 24 de junho. Atualmente, encontram-se em desenvolvimento 4 PRGP: a) Serra da Lousã e do Açor; b) Alto Douro e Baixo Sabor; c) Serras do Marão, Alvão e Falperra; e d) Serra da Malcata (Despacho n.º 2507-A/2021, de 4 de março).
A política de remuneração de serviços dos ecossistemas em espaços rurais tem o objetivo central de promover uma alteração estrutural nestas áreas,
e revela a capacidade de se articular com diversas medidas programáticas e um quadro alargado de instrumentos jurídicos, como os supramencionados Programa de Transformação da Paisagem e Regime Jurídico da Reconversão da Paisagem. Embora seja uma política que exige tempo para produzir efeitos e a afetação de significativos recursos financeiros, quando aplicada num quadro de continuidade de políticas tem um elevado potencial de promover os resultados desejados, evitando custos bem mais avultados associados a problemas de natureza económica, social e ambiental.
[1] Artigo baseado no documento: Santos, R., Antunes, P., Carvalho, C. e Aragão, A., 2019. Nova Política para a Provisão e Remuneração de Serviços dos Ecossistemas em Espaços Rurais – o Problema, a Política e a Implementação. CENSE – Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade, FCT- Universidade NOVA de Lisboa e Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Fundo Ambiental, Ministério do Ambiente e Transição Energética. Lisboa. 45 pp. ISBN 978-972-8893-81-1.
[2] Regulamento 1141/2014, de 22 de outubro de 2014, relativo à prevenção e gestão da introdução e propagação de espécies exóticas invasoras.
[3] Diretiva 2009/28 de 23 de abril de 2009, relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis.
[4] Diretiva 2014/89 de 23 de julho de 2014, que estabelece um quadro para o ordenamento do espaço marítimo.
[5] Diretiva 2004/35 de 21 de abril de 2004, relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais.
[6] Regulamento 1293/2013, de 11 de dezembro de 2013, que estabelece um Programa para o Ambiente e a Ação Climática (LIFE)-
[7] Regulamento 1305/2013, de 17 de dezembro de 2013 relativo ao apoio ao desenvolvimento rural pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER).
[8] Regulamento 1300/2013, de 17 de dezembro de 2013, relativo ao Fundo de Coesão.
[9] Regulamento 233/2014, de 11 de março de 2014, que cria um instrumento de financiamento da cooperação para o desenvolvimento.
[10] Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 11 de setembro de 2014, Comissão Europeia contra República Federal da Alemanha, Processo C525/12.
[11] No Artigo 2.º q) do Decreto-lei n.º 142/2008, de 24 de julho, que estabelece o regime jurídico da conservação da natureza e da biodiversidade, são definidos quatro os tipos de serviços dos ecossistemas: a) serviços de produção, b) serviços de regulação, c) serviços culturais; d) serviços de suporte.
[12] A referência ao “potencial” de prestação de serviços de ecossistemas, e não à efetiva prestação desses serviços, decorre da opção por uma abordagem input-based na aplicação do instrumento.