Efemérides
A Convenção de Istambul e a decisão turca
Assinalamos os 10 anos da Convenção que “reconhece que a vida das mulheres e das meninas é perigosa tanto na família como na rua, na escola e no trabalho”
A Convenção do Conselho da Europa para Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, designada por Convenção de Istambul (CI), foi ratificada por Portugal em 21 de Janeiro de 2013 e entrou em vigor a 1 de Agosto de 2014.
A CI é vinculativa e impõe aos Estados obrigações internacionais no combate à violência contra as mulheres – entre as quais estão as obrigações de respeitar, proteger e garantir o direito das mulheres e meninas a serem livres de violência de género.
Este tratado internacional é considerado um avanço ideológico e simbólico na teorização da violência contra as mulheres, porque não usa uma linguagem neutra em relação ao género, igual à que tem sido adotada na nossa legislação, e reconhece as mulheres como o grupo mais afetado pela violência no seio da família.
Apesar de reconhecer que existe violência contra homens, a Convenção afirma no seu preâmbulo que os vários tipos de violência de género nela previstos (nomeadamente violência doméstica, violência sexual, importunação e assédio sexual, perseguição, mutilação genital feminina ou outros crimes cometidos em nome de uma pretensa tradição ou honra, aborto e casamento forçados, esterilização forçada) atingem de forma desproporcionada as mulheres e entende a violência contra as mulheres como um problema estrutural e epidémico em todas as sociedades, o que tem sido entendido como natural pela cultura. Mais diz a Convenção que a violência contra as mulheres é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens que conduziu à dominação e discriminação contra as mulheres pelos homens, o que as impediu (e impede) de progredirem plenamente, considerando a violência contra as mulheres como um mecanismo social através do qual estas são forçadas a assumir uma posição de subordinação em relação aos homens (muitas vezes ainda que de forma inconsciente).
A Convenção reconhece que a vida das mulheres e das meninas é perigosa tanto na família como na rua, na escola e no trabalho e que as práticas discriminatórias de que são alvo se devem apenas ao facto de pertencerem ao género feminino. Para o efeito, a Convenção, para além dos conceitos de “violência contra as mulheres” e de “violência doméstica” usa o conceito de “género”, termo através do qual designa os papéis, os comportamentos, as actividades e as atribuições socialmente construídos que uma sociedade considera apropriados para as mulheres e para os homens, e o conceito de “violência contra as mulheres baseada no género”, que designa toda a violência dirigida contra uma mulher por ela ser mulher ou que afeta desproporcionalmente as mulheres.
Todas as formas de violência contra as mulheres, mesmo aquelas que têm sido trivializadas pela cultura, como o assédio sexual, são vistas como uma violação grave dos direitos humanos das mulheres e raparigas e como um obstáculo à realização da igualdade entre as mulheres e os homens.
Extremamente importante é o facto de a Convenção reconhecer que as crianças são vítimas de violência doméstica apenas pelo facto de assistirem às agressões praticadas por um dos pais contra o outro/a progenitor/a – a mãe, na maioria dos casos.
Estas inovações conceituais e ideológicas têm por consequência a necessidade de proceder a alterações legislativas no direito português, em vários domínios, no direito da família e no direito penal, no processo civil e no processo penal. E já algumas alterações sucederam em Portugal apás a sua entrada em vigor. Verificou-se uma maior facilidade, no Parlamento, em criminalizar comportamentos como a mutilação genital feminina e casamento forçado ou outras formas de violência sexual mais subtis contra as mulheres e cuja incriminação implicará restrições ao que tem sido considerado uma liberdade «natural» ou um privilégio dos homens. É o caso do alargamento do conceito de violação a atos sexuais de penetração não consentidos e praticados sem violência física ou ameaça grave e da coação sexual a todos os atos sexuais não consentidos (art. 36.º), bem como a punição (por via penal ou outra) do assédio sexual no trabalho e em lugares públicos (art. 40.º). Estas formas de violência permanecem silenciadas e banalizadas pela cultura, sem grande juízo de censura criminal, apesar da sua prática generalizada e dos efeitos traumáticos que geram nas mulheres, sobretudo, durante a adolescência – fase da vida em que são mais vulneráveis e em que mais precisam de segurança e de liberdade para desenvolverem, sem interferências, as suas potencialidades psíquicas, físicas e intelectuais.
A CI introduz, ainda, uma inovação de grande utilidade para as mulheres e para as crianças vítimas de violência doméstica: a tutela, por meio de processos civis urgentes, dos direitos patrimoniais das vítimas e medidas de proteção nos processos de regulação de responsabilidades parentais, norteados, até então, pelo princípio da manutenção da relação da criança com ambos os pais.
Vários países aderiram a esta Convenção, batizada com o nome da cidade de Istambul – lugar onde foi formalizada. Mas por ironia, apesar de lhe ter dado o nome, a Turquia já não se pretende vincular à CI e declarou unilateralmente a sua saída, anunciando-a junto do Conselho de Europa a 22 de Março de 2021. Tal decisão vai entrar em vigor a 1 de Julho de 2021.[1]
A decisão foi tomada de forma unilateral pelo Presidente Erdogan, sem quaisquer debates públicos – nem no Parlamento, nem na sociedade civil – e, segundo vários especialistas em Direito Turco esta decisão é inconstitucional.[2]
O executivo de Erdogan alega, como fundamento, que a Convenção tem vindo a ser “desvirtuada por um grupo de pessoas, na tentativa de normalizar a homossexualidade”, e que, por isso, é contrária aos valores tradicionais do país e do povo turco. [3]
Segundo Hürcan Asli Aksoy, a justificação desta decisão política parece prender-se com uma vontade de Erdogan e do seu partido islâmico conservador AKP (“Partido da Justiça e Desenvolvimento”), de se agarrar ao poder a qualquer custo, e da necessidade de ter o apoio e dos islâmicos ultraconservadores SP (“Partido da Felicidade Islâmica”), com quem tem vindo a construir uma relação de proximidade, com vista à vitória nas próximas eleições. [4]
A saída da CI enquadra-se na crescente tendência de ameaças aos Direitos Humanos, e em particular, dos Direitos das Mulheres na Turquia: segundo várias fontes, nos últimos anos tem havido um aumento de violência contra as mulheres e femicídios (só em 2020, 266 mulheres foram assassinadas) e o risco de violência de género aumentou com as restrições implementadas no âmbito do combate à COVID-19.
Curiosamente, a Turquia não saiu (ainda!) da CEDAW, à qual apenas apôs uma reserva ao Artigo 29 (1), renunciando ao recurso à arbitragem, nos termos do Artigo 29 (2), como forma de resolução de conflitos decorrentes do (in)cumprimento da CEDAW[5].
A Convenção é um daqueles instrumentos que pode causar grande impacto numa sociedade, salvando milhares de vidas e melhorando substancialmente as condições de proteção e assistência às vítimas, bem como no acesso à justiça que tanto precisam de alcançar. Talvez por isso a sua adesão não interesse a quem não pretende obter tal desígnio.
Esperemos agora que este retrocesso nos direitos humanos se restrinja apenas à Turquia, o que já é bastante preocupante, e que mais Países aderentes da Convenção não tenham semelhante recuo, pois tal facto tornar-se-ia incompatível com um Mundo que se quer justo e promotor da igualdade.
[1] Fontes: Conselho da Europa, ‘Full list – Chart of signatures and ratifications of Treaty 210’ [Online], disponível em: https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/210/signatures ; ‘Reservations and Declarations for Treaty No.210 – Council of Europe Convention on preventing and combating violence against women and domestic violence’ [Online], disponível em:
https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/210/declarations?p_auth=8BPfKNrI
[2] Daniel Bellut, ‘Bizarre reasoning aside, Erdogan’s exit from Istanbul Convention is unconstitutional’, Deutsche Welle, [Online], disponível em: https://www.dw.com/en/bizarre-reasoning-aside-erdogans-exit-from-istanbul-convention-is-unconstitutional/a-56964581
[3] Hürcan Asli Aksoy, ‘What lies behind Turkey’s withdrawal from the Istanbul Convention?’, 29-03-2021, Stiftung Wissenschaft und Politik, German Institute for International and Security Afairs, [Online], disponível em:
https://www.swp-berlin.org/en/publication/what-lies-behind-turkeys-withdrawal-from-the-istanbul-convention/ ; Daniel Bellut (cit.)
[4] Hürcan Asli Aksoy (cit.)
[5] Fonte: ONU, ‘United Nations Treaty Collection’ [Online], disponível em:
https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-8&chapter=4&clang=_en