Poderemos falar em genocídio cultural, nas entrelinhas de um genocídio humano?…
A circulação ilícita de bens culturais, ou a sua apropriação e destruição intencional em contexto de conflito armado, consubstanciam fenómenos regulados e amplamente censurados pelo Direito nacional próprio de Estados de Direito, Direito Comunitário e Direito Internacional. A praxis da sua aplicabilidade é toda outra realidade…
Alguma história…
Esta é uma constatação enquadrável na atualidade, pois a história é reveladora de uma quase total inversão fatual desta inter-relação entre humanidade e património cultural. Veja-se que, na Antiguidade clássica, a regra costumeira era no sentido de que o adversário vitorioso de uma guerra ficaria legitimado à propriedade do património cultural de uma dada cidade conquistada. Este uso reiterado foi comportando algumas exceções no que diz respeito a monumentos de culto religioso, nos quais havia ainda algum (ainda que pouco) pejo nos atos de pilhagem. E, nestes casos, não estaria em causa o valor artístico do bem cultural religioso, mas, outrossim, tão-somente o caráter religioso representado no mesmo. As Cruzadas constituem igualmente um exemplo de flagrante legitimação da guerra como meio para apropriação de património cultural alheio. A Guerra dos Trinta Anos foi cena de inúmeros saques de bens culturais e, é cerca deste marco histórico que os juristas começam a debruçar-se sobre a compreensão e enquadramento no Direito do património cultural. Sucede-se a Revolução Francesa e, em seguida, sensivelmente no período entre 1796-1815, ocorre o período das invasões francesas, sob a superior égide do Imperador Napoleão. Neste contexto, Napoleão convocou até uma espécie de “curador” (o Barão Dominique-Vivant Denon) especialmente vocacionado para definir a estratégia cultural daqueles que poderiam ser os mais relevantes bens culturais disseminados maioritariamente pela Europa e Egito invadidos, os quais, seriam então incorporados nos museus e outros espaços culturais em França, mas também ficariam na posse de muitos franceses, de entre os quais, Napoleão.
No final do Século XIX e com enorme conexão com a Guerra Civil americana, surge um primeiro compêndio legislativo visando a proteção de bens culturais em contexto de guerra (Lieber Codice). A nível internacional, saliente-se a Declaração de Bruxelas de 1874 relativa à proteção dos bens culturais em tempo de guerra (na altura, com o incentivo do imperador Alexandre II da Rússia. Outros tempos!). Sucedem-se outros paradigmas legislativos, mas, nesta sede, cumpre agora referenciar a primeira Convenção Internacional da Organização das Nações Unidas – referimo-nos à Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado da UNESCO, resultado da Conferência da Haia (“Convenção da Haia”) reunida em abril/maio de 1954 (com o Protocolo I de 1956 e o Protocolo II de 1999 – Portugal já ratificou ambos).
Uma Convenção Internacional Pioneira no pós II Guerra Mundial…
A Convenção de Haia constitui um achievement legislativo internacional pioneiro, estreitamente correlacionado com os diversificados atos perpetrados contra o património cultural no período 1939-1945
(II Guerra Mundial). Como sabemos, o regime nazi praticou aquilo a que poderemos, em certa medida, determinar como um genocídio cultural, porquanto i) destruiu intencionalmente património cultural, testemunho civilizacional da humanidade (com impacto regional, nacional, mas também mundial) em diversos territórios; e ii) confiscou ilicitamente um universo ainda hoje incomensurável de bens culturais. Alguns destes bens culturais foram posteriormente e justamente restituídos aos museus de origem ou aos herdeiros dos proprietários “confiscados” (muitos deles com origens judaicas e vítimas do Holocausto). Veja-se toda a envolvência da proclamada arte degenerada que envolveu artistas como Picasso, Chagall, Max Ernst, Piet Mondrian, de entre muitos, muitos outros. Todo este património cultural confiscado entrou em circuitos paralelos do mercado da arte e, ainda hoje, não é possível determinar o paradeiro de muitos dos bens ilicitamente apropriados. O regime do III Reich foi, em dada medida, o emblema do genocídio cultural da II Guerra Mundial, mas não deverá ser esquecido o ataque de 1945 à cidade de Dresden pelos Aliados. É altamente questionável, face ao regime internacional já então vigente, que não se trate, também, de um crime de guerra, pois a tentativa de exclusão da ilicitude centrada no animus de que seriam alvos militares e industriais os pretendidos, é de enorme fragilidade, considerando a primazia e esplendor cultural que caracteriza esta cidade alemã.
O regime do III Reich foi, em dada medida, o emblema do genocídio cultural da II Guerra Mundial, mas não deverá ser esquecido o ataque de 1945 à cidade de Dresden pelos Aliados.
A Convenção da Haia obriga os Estados Contratantes a proteger o seu património cultural e a tomar medidas necessárias à sua preservação em decorrência de conflito armado, quer no próprio hiato temporal de uma guerra, quer em momentos de paz. A título de exemplo, suscite-se a sinalética de proteção especial internacional que deverá ser aposta nos bens culturais, garantindo a sua inviolabilidade (emblema protetor Escudo Azul/ Blue Shield). Esta sinalização é primordial para diminuir a destruição de património cultural em caso de guerra e também para melhor fazer prova do crime de guerra, em caso de deliberado ataque direto a bens culturais sinalizados.
Colonização/Descolonização…
Passemos agora a deter-nos nos parâmetros dos diversificados processos de colonização e descolonização que a guerra e paz nos conta…
Os processos em causa (colonização) passaram-se em momentos já acima trazidos à demanda, quando aludimos ao triunfo legitimado daqueles que ganham um conflito (seja guerra ou uma conquista, no seu sentido de descoberta geográfica) e passam a apropriar-se do património cultural dos vencidos. O processo inverso (da descolonização) insere-se já no pós Convenção de Haia, i.e. na segunda metade do Século XX.
Ainda estão em curso diversos processos negociais entre Estados tendentes a determinar algumas restituições de bens culturais aos agora estados independentes. É um assunto que ainda se analisa com “pezinhos de lã”, sem grandes comprometimentos. No entanto, poderemos referenciar alguns exemplos de situações de restituição, como é o caso, do retorno de bens culturais da Suíça para o Egito e para o Peru, dos Países Baixos para a Indonésia, ou da França para ex-colónias no continente africano.
Outros regimes legais…
Este tema leva-nos também, direta ou indiretamente, a outros regimes jurídicos relevantes, em particular:
i) A Diretiva 2014/60/UE do Parla-mento Europeu e do Conselho (“Diretiva 2014”), relativa à restituição de bens culturais que tenham saído ilicitamente do território de um Estado-Membro da União Europeia para outro Estado-Membro (transposta para o ordenamento jurídico português mediante a Lei n.º 30/2016, publicada a 23 de agosto de 2016). Estes regimes vêm impor mecanismos de salvaguarda e de proteção do património nacional de valor artístico, histórico ou arqueológico (conforme previsto no artigo 36.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).
A Diretiva 2014 revogou a Diretiva 93/7/CEE do Conselho, que constituiu um primeiro passo no que diz respeito à cooperação entre Estados -Membros no domínio da circulação ilícita de bens culturais. Destaque-se na Diretiva 2014, o reconhecimento de que os prazos anteriormente vigentes eram excessivamente curtos para a resolução de determinadas situações, consagrando-se prazos mais alargados e, bem assim, uma nova definição, menos abrangente, do que se considera serem bens culturais para efeitos de aplicabilidade do regime sob análise.
ii) A nível de Direito Internacional é fundamental mencionar duas relevantes Convenções, ratificadas por Portugal: i) A Convenção da UNESCO de 17 de novembro de 1970 (ratificada pelo Decreto n.º 26/85, de 26 de julho), relativa às medidas a adotar para proibir e impedir a importação, a exportação e a transferência ilícitas da propriedade de bens culturais; e ii) A Convenção UNIDROIT (International Institute for the Unification of Private Law) de 24 de junho de 1995 (ratificada pela Resolução da Assembleia da República n.º 34/2000, de 4 de abril) sobre os bens culturais roubados ou ilicitamente exportados. Esta última Convenção veio colmatar insuficiências da mencionada Convenção da UNESCO, nomeadamente as construções em redor do terceiro adquirente de boa-fé.
Por fim, Maria Prymachenko e tudo o mais…
A guerra da Ucrânia, que tristemente observamos à data das presentes palavras, leva-nos a questionar e apurar o que poderá já ter acontecido ao nível de proteção do riquíssimo património cultural desta nação.
Foi aprovada declaração e medidas concretas para a assistência internacional de emergência à Ucrânia e a concessão de proteção reforçada ao seu património cultural, bem como um apelo à Rússia para que ponha termo ao conflito. Esta declaração exorta a Rússia ao cumprimento das obrigações nos termos da Convenção de Haia de 1954, e à ratificação do seu Segundo Protocolo. Por outro lado, apela igualmente à inibição de apropriação indevida de bens culturais e de atos de vandalismo contra o património cultural da Ucrânia.
A declaração incentiva, igualmente, a Ucrânia, em estreita coordenação com a UNESCO, a designar os principais sítios/monumentos de património cultural com o emblema protetor Escudo Azul/ Blue Shield. Acresce que convida, ainda, todos os Estados e as organizações de peritos a dotarem a Ucrânia, a seu pedido, de qualquer apoio ou aconselhamento para a proteção e preservação do seu património cultural.
O Comité da UNESCO para a proteção da Propriedade Cultural em caso de conflito armado decidiu acionar um fundo de emergência para a Ucrânia, anunciando a sua disponibilidade para conceder o estatuto de proteção reforçada aos principais sítios do património cultural, em conformidade com as disposições da Convenção de Haia de 1954.
Sucintamente, isto já foi feito, mas também foram, pelo menos, já destruídas 25 obras de uma das artistas mais reconhecidas da Ucrânia, Maria Prymachenko, cerca de 30 lugares de culto religioso, 20 edifícios históricos e 4 museus…
Poderemos falar em genocídio cultural, nas entrelinhas de um genocídio humano?…