Muitos morreram pelo caminho. Alguns de nós sobrevivem e ainda podem contar como foi.
Nós, os do Dia do Estudante de 1962, tínhamos nascido no início da II Guerra Mundial, na qual o país não entrou, por um conjunto de circunstâncias, entre as quais a Aliança com a Inglaterra. No entanto, o padrão de conceitos políticos e sociais estava de acordo com a onda do tempo, o fascismo na Itália, na Alemanha, na Espanha e mesmo na França de Vichy, para além de outros governos satélites dos alemães. Ou seja, nascemos quando a noite ensombrava a Europa. Muitos morreram pelo caminho. Alguns de nós sobrevivem e ainda podem contar como foi.
Em 1962 já levávamos 36 anos de ditadura. Era nesse caldo que tínhamos atingido a maioridade. Tratava-se de um país onde havia censura prévia para os jornais, para os filmes e para o teatro. Havia apreensão de livros depois de publicados. Quando surgiu a televisão, poucos anos antes, transmitia, tal como a Emissora Nacional, um noticiário oficial, preparado por jornalistas afectos ao Governo. Tudo o que se passava para além fronteira era um mar de incógnitas. Na escola primária, para quem a frequentava, o que não era o caso para 60 por cento das pessoas do sexo feminino, a religião católica era obrigatória e na parede, a par da cruz com o Cristo, estavam os retratos do Salazar e do Presidente da República. Os castigos corporais eram a regra e eram proporcionais aos erros do ditado, da cópia e das contas. Idolatrava-se o Império e considerava-se que a “raça branca” tinha que civilizar os “indígenas”. Muitas das crianças andavam descalças. No Alentejo havia ranchos de forme sazonais que percorriam as aldeias a pedir “por amor de Deus”. A PIDE prendia arbitrariamente e torturava para obter confissões. Na época já tinha havido milhares de presos, que totalizariam 30.000 em 1974. Havia algumas Caixas de Previdência, constituídas por desconto nos salários dos trabalhadores, mas não cobriam o custo dos medicamentos. A mortalidade infantil era muito elevada em comparação com os países de democracia. Quanto a estes estavam bem descansados com a presença de três ditaduras na Europa (Portugal, Espanha e Grécia) que assim permaneceram depois das derrotas do nazi-fascismo. A OTAN abençoava Portugal, com a presença da base das Lages nos Açores e um departamento específico na PIDE. E no meio deste panorama eis que em 1961 começa a guerra colonial, que já levedava nos movimentos independentistas que percorriam a Europa e alguns países africanos.
Mas não era contra tudo isto que os estudantes de 1962 lutavam. Ou seria? Podia ser, mas não o diziam. Lutavam apenas para que se realizassem os festejos do Dia do Estudante, como habitualmente. A proibição, que terá sido ocasionada por um eventual endurecimento do regime e por clivagens no seu seio, veio desencadear sucessivas revoltas estudantis que só terminaram em 1974. Aquilo que foi o ano horrível de 1961 para o Salazarismo levou a um endurecimento que não compensou. Aumentaram as prisões, as torturas, as bastonadas na rua. Mas, aumentou também a revolta. Separadamente das revoltas dos estudantes em 1962, os campos do Alentejo assistiam também nesse ano a revoltas colectivas dos trabalhadores rurais, batalha aberta com a Guarda Nacional Republicana e mais repressão. O regime abalou? Muitos de nós tivemos a ilusão de que o Estado Novo ia cair. Não caiu e durou mais 12 anos. A guerra colonial deu cabo dele, como acontece com todos os perdedores de guerra. Mas uma das componentes desse abalar do regime esteve na revolta estudantil de 1962, como estivera na de 1956 (luta contra o decreto 40.900) em Lisboa e viria a estar em 1969 em Coimbra.
O cerne da revolta era a questão da liberdade. Era de liberdade que se falava nos discursos e nos comunicados dos estudantes. Esse movimento pela liberdade implicava o protesto contra a falta de autonomia da Universidade, a entrada da polícia de choque nas zonas universitárias, incluindo as faculdades (o Professor Lindley Sintra foi espancado nos jardins da Faculdade de Medicina de Lisboa/Hospital de Santa Maria) e o espancamento no decurso de manifestações. Insurgiam-se os estudantes contra o facto do Governo publicar a sua versão a seu belo prazer, nos jornais diários e de as respostas dos representantes nunca serem publicadas, pois eram impedidas pela censura.
É também contra a actuação da polícia e contra a censura que se insurgem as centenas de intelectuais que em abaixo-assinado se solidarizam com os estudantes. Foi essa a pedra de toque do movimento. Nunca foi pedido o derrube do Governo, nunca foram focadas as questões económicas, nem mencionada a guerra colonial e a luta pela independência das colónias. Seria na casa dos Estudantes do Império (CEI) que apareciam os primeiros sinais dos sentimentos independentistas. No entanto, o envolvimento das associações nos salvamentos das cheias de 1967, a luta académica de 1969 em Coimbra, o assassinato de Ribeiro Santos na Faculdade de Económicas em 1972 e as lutas de 1973, vieram a tornar o envolvimento estudantil numa verdadeira luta pelo derrube da ditadura e pelo carácter anti-colonial dos movimentos.
Quanto às raparigas de 1962, elas estiveram sempre presentes e foram fundamentais para o sucesso da greve na Faculdade de Agronomia, nas Belas Artes e na Faculdade de Ciências. Na Cidade Universitária constituíram um verdadeiro núcleo inovador na Faculdade de Letras, onde estavam a Fiama Hasse Pais Brandão, a Luísa Nelo Jorge, a Maria João Gerardo (a dos comunicados clandestinos) e muitas outras. Também na Faculdade de Medicina foram decisivas. No entanto, ainda era um tempo em que a mulher era subalterna pela lei e pelos costumes. O Código Civil mantinha o homem como o “chefe de família” que mandava no lar e podia vender os bens da mulher, mesmo que fosse uma máquina de costura. Podia abrir a correspondência e tinha que autorizar a mulher se ela quisesse ir ao estrangeiro. Podia repudia-la se, no acto do casamento, verificasse que não era virgem. E podia mesmo abatê-la se a apanhasse em “flagrante delito”. Quanto aos costumes, seguiam estas regras e eram transversais a classes sociais e ideologias. Os rapazes de 1962 eram ambivalentes em relação aos costumes, com variações conforme o nível de consciência progressista. As raparigas falavam nas assembleias de faculdade tal como os rapazes, foram presas e foram espancadas. Mas não falavam nos plenários do Estádio Universitário. Por isso foi necessário que alguém fosse lá dizer que “a mulher não é só o repouso do guerreiro, é guerreiro também”. E foi assim. Elas nunca mais pararam nas lutas que se seguiram. Foram guerreiras, foram presas, perseguidas, agiram por si próprias.
Dois marcos na década de 70
Dez anos depois da crise estudantil da década de sessenta, voltaram a ser caladas mais vozes que proferiam a urgência da mudança. Em 12 de Outubro de 1972, Ribeiro dos Santos, estudante universitário da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), dirigente estudantil, militante de uma organização maoista então na clandestinidade, o MRPP, foi assassinado pela PIDE, tornando-se um símbolo da luta estudantil contra a repressão e a guerra colonial.
Em 9 de Outubro de 1975, Alexandrino de Sousa, também estudante da FDUL, foi atirado ao rio, por um grupo militantes da UDP, enquanto colava cartazes que assinalavam a morte de Ribeiro dos Santos. Acabou por morrer afogado. Na altura fazia parte do Comité Revolucionário dos Estudantes da Faculdade de Direito, era dirigente da Federação de Estudantes Marxistas-Leninista e director do jornal Guarda Vermelho.