Decentralised Autonomous Organisations (DAO): conceito, enquadramento legal e desafios1
1. O QUE É UMA DAO?
Muito se tem falado sobre novas formas de organização, sem barreiras geográficas, assentes em tecnologia e nas quais as decisões são potencialmente tomadas de forma totalmente autónoma. As organizações autónomas descentralizadas (também conhecidas pelo acrónimo inglês DAO, ou decentralised autonomous organisations) abriram a porta a esta possibilidade.
Uma DAO é um smart contract ou um conjunto de smart contracts conceptualizado como uma organização com fins (geralmente) lucrativos relativamente autónoma e autossuficiente na qual um conjunto de participantes junta ativos vários – dinheiro, criptoativos, ou ativos de outra natureza, incluindo ativos “tradicionais” e prestações de serviços ou de trabalho – com vista a levar a cabo uma determinada atividade. Caracteriza-se por dispensar a estrutura tradicional de governo societário característico das sociedades de capitais (nomeadamente a separação entre sócios e administradores). As competências de gestão tradicionalmente alocadas à administração são assumidas (com medidas distintas em casos distintos) diretamente pelos participantes ou por um smart contract, com regras imbuídas num código informático, que as executa automaticamente e de forma autónoma dos participantes. Por isso se diz que são organizações descentralizadas e autónomas.
Podem ser apontadas várias definições de DAO, mais ou menos amplas, exigindo um fim lucrativo ou dispensando-o, pressupondo uma estrutura mais próxima de uma sociedade “real” ou aceitando todas. Apesar da polissemia associada ao termo, para além de deverem estar dotadas de uma organização relativamente descentralizada e autónoma, as DAO têm pelo menos um substrato tecnológico (funcionam com base em smart contracts, o que pressupõe a utilização da tecnologia blockchain); um substrato pessoal (têm membros humanos); um substrato material (têm ativos, geralmente criptoativos, geridos ou pelo smart contract ou pelos humanos); e um teleológico (têm um fim, lucrativo ou não).
2. ENQUADRAMENTO LEGAL DAS DAO: APONTAMENTO DE DIREITO COMPARADO
Muitas DAO não se constituem enquanto sociedades de capitais por não se quererem sujeitar às normas supletivas de governo societário em vigor na generalidade dos ordenamentos jurídicos. Por esse motivo, são normalmente reconduzidas a categorias de sociedades de pessoas, com a consequência de não disporem – regra geral – de personalidade jurídica e de os seus participantes não terem personalidade limitada, sofrendo ainda limitações à sua capacidade
No direito português, a generalidade das DAO ficaria sujeita ao regime da sociedade civil (artigos 980.º e ss. do Código Civil)2, desde que se que reúnam três condições: contribuições das partes, exercício comum de uma atividade que não seja de mera fruição e o fim de repartição dos lucros. Tal aplicação teria como efeitos a administração comum por todos os sócios (artigo 985.º, n.º 1, do Código Civil) e responsabilidade pessoal e solidária dos sócios uma vez excutido o património da sociedade (artigos 996.º e ss. do Código Civil). As sociedades civis não gozam de personalidade jurídica (a não ser que promovam o seu registo).
O cenário não é diferente noutros ordenamentos continentais. Tanto em França3 como na Alemanha4, a maioria das DAO ficaria sujeita (independentemente da vontade dos participantes) ao regime das sociedades civis ou das sociedades em nome coletivo sem personalidade jurídica, em qualquer caso com consequências semelhantes – falta de personalidade jurídica, administração comum pelos “sócios” e responsabilidade pessoal e solidária dos “sócios”, com a particularidade de em nenhum dos casos se prever a excussão prévia do património da sociedade como acontece no direito português.
Nos ordenamentos de common law a solução é semelhante, com a diferença terminológica de a figura equivalente à sociedade civil se apelidar partnership e não haver distinção consoante a natureza civil ou comercial da atividade5.
Outros ordenamentos jurídicos têm vindo a avançar com a consagração expressa das DAO no seu direito material. Os casos mais conhecidos são os Estados norte-americanos do Vermont e do Wyoming, que consagraram novos tipos societários no seu direito substantivo para incentivar a “constituição” de DAOs – a Blockchain-Based LimitedLiability Company (ou BBLLC) e a DAO Limited Liability Company (ou DAO LLC), respetivamente6. Em ambos os casos, previu-se a possibilidade de constituição de sociedades comerciais com personalidade jurídica e responsabilidade limitada com uma grande margem de discricionariedade na conformação do seu governo interno (incluindo através de smart contracts) e para a determinação da sua estrutura de participação.
3. PERSONALIDADE E CAPACIDADE JURIDICA
Como referido, salvo se promoverem o seu registo, as DAO não gozam de personalidade jurídica. Sem personalidade jurídica, falta às DAO um centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos, não podendo ser titulares de direitos e obrigações próprios. Por inerência, as DAO não têm capacidade jurídica, razão pela qual é normal a constituição de legal wrappers – que podem assumir formas jurídicas distintas –, que são entidades personificadas que interagem com o mundo off chain.
A falta de personalidade jurídica determina, naturalmente, que não possam ser parte em ações judiciais nem titulares de um património autónomo, separado dos patrimónios dos seus membros. Aos membros/participantes destas organizações não pode, por isso, ser aplicado o princípio da limitação da responsabilidade, respondendo estes solidaria e ilimitadamente por quaisquer danos que estas organizações venham a causar. A perceção que os fundadores e os participantes destas organizações possam ter sobre a inexistência de responsabilidade, pelo facto de estas organizações atuarem – pelo menos aparentemente – fora dos quadros legais existentes, está, por isso, desfasada da realidade, existindo já um exemplo recente de uma iniciativa de “levantamento do véu digital” destas organizações.
No dia 2 de maio de 2022, os utilizadores da bZx DAO, uma Organização Autónoma Descentralizada que operava uma plataforma de finanças descentralizadas (“DeFi”) de empréstimos e negociação de margem, instauraram uma ação coletiva junto do Tribunal Distrital do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, com vista à responsabilização dos fundadores da DAO, dos criadores e gestores da plataforma e de algumas empresas investidoras na organização, pelos danos causados por um ataque informático que resultou no desvio de criptomedas no valor estimado de 55 milhões de dólares, em virtude de alegadas falhas de segurança do protocolo da bZx DAO7. Levantado o “véu digital”, julgamos que não é de excluir que a responsabilidade dos fundadores, criadores e gestores da plataforma seja conformada ao abrigo dos pressupostos da responsabilidade civil obrigacional, fruto da “relação especial” que se estabelece entre estes agentes e os seus investidores.
4. QUALIFICAÇÃO DOS TOKENS
A estrutura patrimonial das DAO é comummente constituída por criptoativos cuja qualificação jurídica nem sempre é clara. Dependendo do concreto desenho dos criptoativos, pode discutir-se a sua qualificação como valores mobiliários e consequente sujeição à legislação aplicável à oferta e negociação de valores mobiliários, bem como ao regime do abuso de mercado e divulgação de informação qualificada8, por exemplo.
Alguns tokens de investimento assumem características de governance tokens e desempenham um papel relevante no governo das DAO, de tal forma que a posição assumida pelos seus titulares se aproxima da de um acionista. Fala-se, nestes casos, em “tokenistas”9. Caso estes tokens sejam acompanhados pelo direito ao lucro, existe o risco de qualificação destes criptoativos como valores mobiliários. A qualificação dependerá, naturalmente, dos concretos direitos associados ao token.
Relativamente aos criptoativos que não se qualifiquem como valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, exige-se que as entidades que pretendam exercer serviços de transferência, troca e guarda sob os mesmos se registem junto do Banco de Portugal, com vista à verificação do cumprimento das disposições legais e regulamentares aplicáveis em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, e Aviso do Banco de Portugal n.º 3/2021, de 23 de abril).
No plano europeu, o status quo atual mudará a breve trecho, quando a proposta de Regulamento Europeu sobre o mercado de criptoativos, apelidado de MiCA (Regulation on Markets in Crypto-assets) for aprovada. O Regulamento proposto tem o objetivo de estabelecer um quadro próprio, específico e harmonizado a nível da União Europeia, com regras específicas para os criptoativos não abrangidos pela legislação da União Europeia em matéria de serviços financeiros, assim como as atividades e serviços conexos. O Regulamento é acompanhado pelo já aprovado Regulamento (UE) 2022/858 do Parlamento Europeu e do Conselho, que produz efeitos a partir de 23 de março de 2023 (também conhecido como DLT Pilot Regime), que prevê um regime-piloto para as infraestruturas de mercado baseadas na tecnologia de registo distribuído.
Estes atos legislativos europeus terão impacto nas DAO, que terãode avaliar em que medida passarão a exercer atividades reguladas e se terão que se constituir como pessoa coletiva para o efeito.
5. DIREITO APLICÁVEL
Determinar a lei aplicável a uma DAO não é fácil. Por um lado, não existe regime especificamente aplicável e, por outro lado, o sistema de Direito de Conflitos relativo às pessoas coletivas não se encontra harmonizado. Pode acontecer que a DAO não seja totalmente descentralizada e/ou assuma uma forma legalmente reconhecida, caso em que pode estar sujeita a uma lei específica. Em Portugal, como se sabe, para a definição do estatuto pessoal das pessoas coletivas de direito privado releva a sede da administração (artigo 33.º do CC e 3.º do CSC), sendo que no caso das sociedades comerciais, a sociedade que tenha a sua sede estatutária em Portugal não pode opor a terceiros a lei pessoal estrangeira. Em qualquer caso, se a DAO for totalmente descentralizada, não será possível identificar a localização da sua sede ou da sua administração efetiva. Tem-se avançado a nacionalidade ou residência do grupo de titulares de tokens com direitos de voto suficiente para determinar o rumo da DAO como elemento de conexão relevante para apurar a lei aplicável.
O enquadramento das DAO nem sempre é claro e importa estudar as melhores soluções a adotar para estas entidades para, eventualmente, no futuro se procurar um enquadramento legal harmonizado e adequado. O grupo de investigadores do Lisbon DAO Observatory do Centro de Investigação de Direito Privado tem-se dedicado a esta tarefa.
[1] As opiniões expressas no presente trabalho são exclusivas dos Autores.
[2] Pode ainda considerar-se a aplicação do artigo 36.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, que diz respeito às sociedades irregulares pré-contrato, mas a própria disposição manda aplicar o regime das sociedades civis a essas situações.
[3] No direito francês, a aplicação de tal regime a uma DAO dá-se por intermédio do regime da sociedade criada de facto (société créée de fait), previsto no artigo 1873 do Code Civil e aplicável quando uma pluralidade de pessoas se comporta como se tivessem constituído uma sociedade de qualquer tipo sem ter seguido as formalidades de constituição, devendo verifi car-se a existência de contribuições, uma partilha de lucros e uma vontade comum de prosseguir uma atividade. O regime das sociedades criadas de facto manda aplicar o regime das sociedades em participação (sociétés en participation), que convoca o regime das sociedades em nome coletivo (sociétés en nom collectif) ou das sociedades civis (sociétés civiles), consoante a atividade prosseguida seja comercial ou não.
[4] No direito alemão, uma DAO seria muito provavelmente considerada uma sociedade civil (Gesellschaft bürgerlichen Rechts ou GbR) ou uma sociedade em nome coletivo (Off ene Handelsgesellschaft ou OHG). A existência de uma GbR (prevista no § 705 do Código Civil alemão) requer apenas a constituição de uma obrigação contratual entre uma pluralidade de sócios para prosseguir uma atividade comum através de contribuições comuns, sem necessidade de cumprir quaisquer formalidades. Quanto tal fi nalidade for comercial, a sociedade será qualificada como uma OHG (§ 105 do Código Comercial alemão). A intenção das partes é irrelevante para a aplicação do regime. Tanto a GbR como a OHG são administradas por todos os sócios, não têm personalidade jurídica e os sócios são direta, pessoal e solidariamente responsáveis pelos atos da sociedade.
[5] No direito federal norte-americano ou no direito inglês a maioria das DAOs não constituídas como uma pessoa coletiva específi ca e que reúna os amplíssimos requisitos para qualificação como partnership – pluralidade de pessoas que exercem em conjunto uma atividade económica com fim lucrativo – veem esse regime ser-lhes aplicado de forma injuntiva, com a administração conjunta e a responsabilidade direta, pessoal e solidária como algumas das consequências da referida aplicação.