Informação e desinformação
na Era Digital
A Invasão do Capitólio e Outros Desvarios
No dia 6 de janeiro de 2021, o mundo assistiu incrédulo à invasão do Capitólio, em Washington D.C, no país que, desde o século XVIII, serve de bússola da democracia do mundo ocidental. A origem deste acontecimento insólito, que deixa profundas marcas na história dos EUA e do mundo, bem para além das vidas perdidas e bens destruídos pela passagem da multidão que o protagonizou, encontra-se, em grande medida, nas redes informáticas que, mais de meio século antes, encontraram o seu berço nesse mesmo país.
Em 1969, ano em que a Advanced Research Projects Agency dos EUA ligou os primeiros nós daquela que viria a ser uma rede informática de abrangência mundial, designada Internet, estaríamos longe de imaginar que esta poderia ser utilizada para derrubar governos, alterar regimes políticos, reforçar ou quebrar alianças internacionais ou atacar as próprias instituições democráticas que permitiram que a criação e desenvolvimento dessa rede fosse uma realidade. Uma análise atenta dos factos revela, porém, que os vários movimentos que surgiram e que se foram desenvolvendo até desembocarem nos acontecimentos de 6 de janeiro foram maioritariamente impulsionados pela utilização das plataformas em rede, por conteúdos divulgados em rede, sobretudo através da partilha de notícias falsas que reforçavam teorias da conspiração.
A extrema capilaridade e simetria das redes informáticas contribui para que fenómenos como este sejam facilmente repetíveis. A capilaridade significa que estas redes chegam diretamente a um número extremamente significativo de pessoas. A simetria, neste sentido, significa que cada uma dessas pessoas pode atuar quer como emissor, quer como recetor de informação. Desta forma, qualquer tipo de conteúdos pode fácil e rapidamente chegar a milhões de pessoas, com consequências imprevisíveis. Encontram-se, pois, reunidas todas as condições para a proliferação de atividades de manipulação da informação. Estas atividades podem ter origem local ou ser orquestradas, de forma silenciosa e impercetível, em qualquer parte do globo, a soldo de quem nisso tiver interesse. Existem estruturas montadas especificamente para o efeito, com maior ou menor sofisticação, com maior ou menor intervenção de alguns Estados.
Para dar resposta a estas ameaças, poderão as empresas que disponibilizam os conteúdos em rede atuar perante os conteúdos, deixando circular alguns e bloqueando outros, como se verificou com o bloqueio da conta de Donald Trump no Twitter? Mais do que possibilitar uma atuação, deverão estas empresas estar sujeitas a um dever de atuar? No sentido afirmativo, argumenta-se que as plataformas não podem fechar os olhos aos conteúdos que disponibilizam, devendo controlar o que chega ao público através dos seus serviços. No sentido contrário, argumenta-se que a intervenção das plataformas dar-lhes-á um poder inaceitável, difícil de supervisionar e, em última análise, traduzir-se-á numa ferramenta de censura, ao serviço dos mais diversos e encobertos fins.
Estas questões não são novas e colocaram-se assim que as redes informáticas começaram a merecer uma maior adesão do público. A Seção 230 do Communications Act, aprovada pelo Commmunications Decency Act de 1996, foi o primeiro instrumento jurídico que procurou dar resposta a estas questões. Acabou por se revelar determinante para o desenvolvimento das redes num momento tão crucial da sua história. Esta parcela de legislação dos EUA veio pela primeira vez esclarecer que uma entidade que atuasse em rede não seria, por regra, responsável pelos conteúdos de terceiros que divulgasse através dos seus serviços. Veio ainda permitir que, em certas circunstâncias, essa entidade atuasse para bloquear ou restringir conteúdos de teor questionável, sem que pudesse ser por isso responsabilizada. O princípio subjacente a esta legislação acabou por ser replicado em várias partes do mundo, incluindo na UE e, por efeito da transposição de uma Diretiva comunitária, em Portugal.
Em traços muito resumidos, o regime vigente na maioria dos países do mundo ocidental, incluindo os EUA e Portugal, prevê que as empresas que gerem plataformas que disponibilizam conteúdos de terceiros sejam obrigadas a atuar, bloqueando ou impedindo o acesso a conteúdos, somente quando tenham conhecimento de que determinados conteúdos ilícitos estão a circular através dos seus serviços. Não são, de resto, obrigadas a realizar uma vigilância ativa dos conteúdos que circulam através dos seus serviços, pelo que o conhecimento dos conteúdos ilícitos tem de ser demonstrado. Em relação aos demais conteúdos, que não sejam ilícitos – ainda que nocivos ou de teor questionável –, as empresas que gerem as plataformas têm liberdade para atuar conforme as regras de utilização dos seus serviços, previamente por si definidas. Estas regras não podem ser discriminatórias ou, de outra forma, contrariar as normas jurídicas vigentes, mas, dentro dessas amplas balizas, as empresas têm uma razoável liberdade para atuar como entenderem.
Deve destacar-se o facto de o quadro legal agora descrito já ter cerca de duas décadas, o que, no contexto do ritmo vertiginoso de evolução dos meios eletrónicos, representa um período de vigência extremamente longo. Pode, pois, questionar-se se este quadro legal se mantém atual e adequado à realidade atual. O quadro legal da UE nesta matéria está neste momento a ser sujeito a revisão, tendo a Comissão Europeia divulgado em dezembro de 2020 uma proposta do Digital Services Act, que compreende uma nova versão do regime anterior, complementada pela pormenorização de alguns aspetos que careciam de atenção. Muito embora esta proposta esteja apenas ainda na fase inicial da sua discussão no seio da UE, mantém o regime atrás descrito. Do outro lado do Atlântico, têm-se ouvido também várias vozes no sentido de alterar, para acompanhar a evolução dos tempos, a referida Secção 230 do Communications Act. Contudo, as propostas de alteração até agora apresentadas mantêm, no essencial, o mesmo regime.